junho 9, 2021
No dia 27 de maio de 2021, a Advocacia Geral da União (AGU) foi acionada pelo Presidente da República, Jair Bolsonaro, para atuar contra as medidas restritivas impostas pelos governos dos estados de Pernambuco, Rio Grande no Norte e Paraná, que vêm tentando controlar a pandemia da Covid-19.
A AGU ajuizou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 6855) com vistas a obter do Supremo Tribunal Federal a suspensão, em sede de liminar, dos decretos estaduais que determinaram a adoção das medidas de lockdown e “toques de recolher”, bem como, no mérito, a declaração da alegada inconstitucionalidade de tais atos normativos. A petição apresentada, contudo, não passa de uma construção jurídica infundada e falaciosa. Seus argumentos desviam das finalidades do ordenamento jurídico democrático da Constituição de 1988 (CR/88). Cuida-se de mais uma implementação da erosão democrática no âmbito da retórica e do campo jurídico pelo governo do presidente Bolsonaro.
Qual é esse teor argumentativo? Quais seriam os objetivos do Presidente e da AGU evidenciados em tal fenômeno? Está ocorrendo um desgaste institucional no Brasil? São essas algumas discussões que poderão ser encontradas no presente texto.
Embora tenha se passado mais de um ano desde o começo da pandemia da Covid-19 e já existam vacinas sendo produzidas e administradas contra a doença, a situação da saúde pública no Brasil segue em completo descontrole. Em verdade, o ano de 2021 tem sido ainda mais catastrófico para o país no que diz respeito à pandemia. O assustador recorde de 4.249 mortes por dia alcançado no mês de abril, bem como o aumento de 70% do número de mortes pelo coronavírus em maio, em comparação com a média registrada no ano passado, são alguns exemplos da piora da situação.
Nesse cenário, diversos Estados e Municípios brasileiros decidiram adotar medidas mais restritivas para o combate à pandemia, como foi o caso dos estados mencionados na ADI ajuizada à mando do presidente. O estado do Rio Grande do Norte, por exemplo, além da constante falta de profissionais para atuar na linha de frente, já conta com um caso de morte suspeito de ter sido provocado pela nova variante descoberta na Índia.
Em Pernambuco, o número de casos confirmados ultrapassou 500 mil na última segunda-feira (07/06/2021) e os indicadores permanecem em alta, com o recorde de 111 mortes pelo coronavírus em 2021 registrado ontem, dia 8 de junho. No Paraná, o número de casos e mortes da Covid-19 cresce exponencialmente desde março de 2020 e vem apresentando uma piora considerável, com saltos maiores nos índices, a partir de, pelo menos, fevereiro e março deste ano, o que ocasionou um verdadeiro colapso do sistema de saúde estadual.
Esses estados são governados tanto por partidos que fazem oposição a Bolsonaro (PSB – Pernambuco e PT – Rio Grande do Norte) quanto por um partido alinhado ao governo (PSD – Paraná). Tal aspecto parece indicar que o presidente do Brasil se opõe frontalmente à qualquer tentativa amparada pela ciência que busque controlar minimamente o contágio pelo coronavírus no atual contexto pandêmico.
Ainda em abril de 2020, o Supremo Tribunal Federal já havia decidido pela autonomia dos entes políticos – Estados e Municípios – para a adoção de medidas de enfrentamento da pandemia, reconhecendo-se as competências comum (art. 23, II da CR/88) e concorrente (art. 24, XII da CR/88). No entanto, isso não parece ter sido suficiente para frear os impulsos do presidente de boicotar as políticas públicas estabelecidas no país contra a disseminação da doença.
O fato é que o presidente Jair Bolsonaro tenta constantemente e a todo custo atrapalhar os esforços para o combate à Covid-19, seja através da sua postura negacionista apresentada desde o princípio por meio de seus discursos e das aglomerações provocadas; das normas emitidas pelo governo federal em virtude da pandemia; da sabotagem ao Ministério da Saúde; ou da recusa irresponsável e genocida na compra de vacinas para imunizar a população. Essa gestão bolsonarista orientada para boicotar as medidas sanitárias contra o vírus é demonstrada, inclusive, no relatório produzido pela ONG Human Rights Watch, divulgado em janeiro deste ano. Suas omissões e medidas traduzem a busca deliberada por uma imunidade de rebanho que já custou a vida de milhares de brasileiros.
A ADI 6855 surge, então, como mais uma dessas tentativas presidenciais de interferir e frustrar o enfrentamento à crise sanitária pelos estados. A petição assinada pelo Advogado-Geral da União, André Mendonça, em conjunto com Bolsonaro, chama atenção pelos seus fundamentos, que invocam supostos riscos às liberdades individuais e não se coadunam com uma leitura hermenêutica adequada à Constituição de 1988. Uma lógica bem parecida com a adotada no julgamento das medidas restritivas para templos religiosos e cultos (ADPF 811).
Em seus fundamentos, a ADI de nº 6855 apresentada questiona a legitimidade democrática das medidas de restrição impostas pelos governadores de Pernambuco, Rio Grande do Norte e Paraná.
Em síntese, a AGU alega a necessidade de limitar o que ela denomina como um “excesso no manejo dos poderes de emergência”, utilizando como fundamentos (I) a Resolução do Parlamento Europeu, de 13 de novembro de 2020; (II) a Comissão de Veneza; (III) o Decreto Legislativo nº 6/2020; (IV) a Lei nº 13.979, de fevereiro de 2020; (V) o Pacto de São José de Costa Rica.
O excerto retirado da Resolução do Parlamento Europeu reitera a necessidade de preservar direitos fundamentais diante das situações de emergência. Igualmente, o trecho reforça a limitação dos impactos no Estado de Direito e na democracia. No mesmo sentido é o pronunciamento da Comissão de Veneza.
Já o Decreto Legislativo nº 6/2020, o Pacto de São José da Costa Rica e a Lei nº 13.979/2020 foram ressaltados como importantes medidas para o combate dos avanços da Covid-19.
A AGU argumenta que nenhum desses diplomas normativos teria o poder de transferir aos entes políticos a possibilidade de decretar e legislar sobre medidas de restrições genéricas. O raciocínio central da AGU é o de reforçar que as medidas políticas e administrativas tomadas contra o avanço da Covid-19 são supostos ataques às liberdades e aos direitos fundamentais.
Nessa perspectiva, a petição da AGU hostiliza as medidas de proteção da Covid-19 adotadas pelos entes políticos locais, inclusive denominando o atual contexto brasileiro de “cenário distópico” ardilosamente. Sua estratégia é de se utilizar de bagagem jurídica válida de maneira deslocada, quando convém, para reforçar toda a sua argumentação falaciosa, como se o combate à pandemia fosse sinônimo de extensão ou surgimento de autoritarismo no Brasil.
A ação proposta se apresenta como democrática, defensora dos direitos e garantias fundamentais, mas não considera a necessidade das restrições para preservação da vida. O jogo de palavras imposto é de um projeto político autocrático travestido de democrático. É uma contradição performativa em busca de uma normalização da má gestão bolsonarista.
É possível concluir que, por trás dos argumentos levantados pela AGU, as motivações do Presidente da República, evidentemente, servem a um interesse específico, moralmente injustificável e que foge à razoabilidade, tendo em vista que o Brasil ultrapassou 473 mil mortes pela Covid no dia 6 de junho e já registrou mais de 70 mil casos em 24h, podendo chegar até 115 mil casos por dia. Mesmo diante da tendência de queda mundial, com avanços em diversos países, o Brasil registrou os maiores números de novos casos e óbitos no continente americano.
Dentre as abstrações feitas pelo Advogado-Geral da União, André Mendonça, nos chama atenção, também, o uso da doutrina do professor argentino Roberto Gargarella, que faz uma crítica ao autoritarismo político característico da América Latina, destacando o histórico de violações das constituições no continente. Ao analisar a estrutura das constituições latino-americanas, Gargarella conclui que tais textos constitucionais permitem a maior concentração de poderes no Executivo, fenômeno intitulado de hiperpresidencialismo.
Acontece que o próprio Gargarella se refere à gestão de Bolsonaro como “caprichosa, e de consequências catastróficas”. O referido jurista, por meio da revista The Lancet, lembrou que a maior ameaça ao Brasil não seria o vírus, mas o próprio presidente, cujas atitudes comumente apontam para a arbitrariedade e irracionalidade.
O autor critica o processo de erosão democrática que o atual Estado Democrático de Direito brasileiro vem vivenciando e aponta como provável causa a concentração de poderes no Executivo, jamais se referindo às medidas restritivas adotadas pelos governos estaduais como ações autoritárias ou descabidas, como parece indicar André Mendonça.
Ocorre que a ADI e sua argumentação contraditória podem se enquadrar como um elemento que integra os ataques de Jair Bolsonaro à democracia – esse sim responsável por uma verdadeira erosão democrática.
A erosão democrática pode ser definida como “o processo incremental, mas em última instância ainda substancial, de decadência dos três predicados básicos da democracia: eleições competitivas, direitos constitucionais de liberdade de expressão e associação, e o estado de direito”.
Assim, a erosão promove um substancial abalo das estruturas democráticas, com a deterioração e decomposição da democracia em seus elementos fundamentais. Por se tratar de um processo mais lento e gradual, os autores Ginsburg e Huq entendem que essa é a forma contemporânea mais comum de ruptura institucional, com a estratégia de inserção de elementos antidemocráticos.
É por meio dessa estratégia que a petição inicial da ADI 6855, elaborada por André Mendonça, “embasa” sua argumentação. As instituições empenhadas no combate à pandemia são postas como inimigas virtuais da população, em uma tentativa de culpabilizar as soluções criadas e desenvolvidas pelos entes políticos comprometidos com a vida. É utilizada uma argumentação que se apresenta democrática, mas materialmente não é.
Para Mendonça, há uma suposta sistemática de ataques às liberdades individuais contra os cidadãos. O advogado reitera esse argumento esvaziado durante toda a petição. Os dados revelam o contrário, conforme já demonstrado: o Brasil vive a maior crise sanitária e hospitalar da sua história, na qual ocorre uma genuína hecatombe com a população brasileira.
Esse elemento é ignorado por Mendonça. O advogado segue o modelo do presidente Bolsonaro: ataques e desgastes institucionais na democracia brasileira. Ainda, realiza o deslocamento proposital dos mecanismos jurídicos democráticos para o que lhe convém, ao invés de se valer de uma estrutura hermenêutica adequada das normas jurídicas ao caso concreto. Assim, a retórica contraditória e falaciosa tenta colocar em xeque a ilibada legitimidade jurídica e democrática para lidar com as medidas de combate à Covid-19.
Por fim, há outra problemática relevante nesse contexto: o Ministro Marco Aurélio Mello deverá se aposentar no próximo dia 5 de julho, momento em que uma nova indicação deverá ser feita pelo então presidente da República.
O nome cotado é justamente de André Mendonça. Nesse sentido, é possível questionar quais seriam as possíveis implicações políticas e jurídicas dessa provável indicação.
(Brasília – DF, 29/04/2020) Presidente da República, Jair Bolsonaro durante Assinatura do Termo que dá posse ao Ministro da Justiça e Segurança Pública, André Luiz de Almeida Mendonça. Foto: Isac Nóbrega/PR
Ora, o fato do candidato à vaga da mais alta corte do país distorcer propositalmente argumentações para ceder aos caprichos do presidente da República acende um alerta vermelho para uma possível instrumentalização da corte para fins políticos, em desarmonia com os direitos e garantias fundamentais da Constituição de 1988.
É necessário se manter atento diante desses sinais. A argumentação jurídica falaciosa não é falta de conhecimento, é um projeto político bem definido. É a verdadeira demonstração do negacionismo e do genocídio da gestão de Bolsonaro.
Por Nathalia Brito de Carvalho [1], Lucas de Souza Prates [2], Luísa Mouta Cunha [3].
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[1] Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFMG. Pesquisadora do Centro de Estudos sobre Justiça de Transição (CJT/UFMG).
[2] Graduando em Direito pela Universidade Federal de Ouro Preto. Pesquisador associado ao Direito Internacional Sem Fronteiras (DisF) e ao Centro de Estudos sobre Justiça de Transição (CJT/UFMG).
[3] Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Extensionista do Centro de Estudos sobre Justiça de Transição (CJT/UFMG).