novembro 6, 2019
Protestos em massa têm emergido em diferentes países do globo. Em Barcelona, na Espanha, o movimento independentista tem feito grandes protestos contra sentenças proferidas pelo Tribunal Superior da Espanha em relação a líderes separatistas catalães. Em Hong Kong, manifestantes se organizam contra a ingerência chinesa e reivindicam direitos. Na América Latina, os países lutam contra as políticas de austeridade que têm por consequência o agravamento da desigualdade e da pobreza. No Chile, país com a maior renda per capita da região, movimentos anti-neoliberais buscam a implementação de políticas públicas que revertam o quadro social decorrente da política econômica das últimas décadas, buscando garantir a todos o acesso a bens materiais mínimos. No Equador, a implementação de medidas drásticas buscando a observância de um acordo firmado pelo país com o Fundo Monetário Internacional levou à instauração de um estado de exceção por 60 dias.
A perspectiva de que semelhantes demonstrações massivas de insatisfação com o governo chegassem ao Brasil trouxe à tona, mais uma vez, a face anti-democrática do atual cenário político brasileiro, demonstrada em persistentes e escancarados recursos a ameaças autoritárias em face de contestações populares.
A eclosão de movimentos sociais de contestação na América Latina movidos pela insatisfação com as condições de vida geradas por políticas neoliberais trouxe uma nuvem de incerteza sobre o futuro das políticas de austeridade que vêm sendo implantadas no Brasil desde 2016. Diante da possibilidade de ocorrência de levantes tais como os vistos no Chile, o Deputado Federal Eduardo Bolsonaro, líder do PSL no Congresso e filho do atual presidente Jair Bolsonaro, ameaçou retaliar com a adoção de medidas repressivas pelo governo, fazendo menção expressa a um possível novo AI-5, notório instrumento de recrudescimento da repressão durante a ditadura.
Em meio também a crises políticas internas – o nome do Presidente Jair Bolsonaro foi recentemente mencionado no curso da investigação criminal sobre o homicídio da Vereadora carioca Marielle Franco, o que se soma as investigações do “laranjal do PSL” e ao caso Fabrício Queiroz -, Eduardo Bolsonaro disse em entrevista: “Se a esquerda radicalizar a esse ponto, a gente vai precisar ter uma resposta. E uma resposta pode ser via um novo AI-5, pode ser via uma legislação aprovada através de um plebiscito como ocorreu na Itália. Alguma resposta vai ter que ser dada”.
Uma ameaça como esta, especialmente por ter sido realizada por um representante do Congresso Nacional, acende uma luz vermelha sobre aquilo que o cientista político Larry Diamond chama de “recessão democrática”: um processo incremental que envolveria diferentes fenômenos que culminaria em uma queda na qualidade de democracias mais novas, um aprofundamento do autoritarismo e problemas que assolam democracias mais consolidadas. Em um contexto de ocorrências similares no Brasil e no mundo, faz-se necessário refletir sobre uma interrupção e possível reversão da onda de redemocratizações que se seguiram ao fim da Guerra Fria.
É difícil imaginar que em um país como o Brasil, que passou por um recente período ditatorial (1964 a 1985), baseado em perseguição política, censura, tortura, desaparecimentos forçados e morte de opositores, haja parlamentares que julguem aceitável, em um subvertida defesa estabilidade política, fazer apologia ao retorno do Ato Institucional n.5 (AI-5).
Importante lembrar que os atos institucionais, decretados ao longo da ditadura militar no Brasil, foram normas excepcionais, as quais conferiram àquele regime autoritário um alto grau de centralização da administração e da política do país. Dentre os 17 atos institucionais promulgados ao longo dos 21 anos de regime ditatorial, o AI-5 é aquele reconhecido por marcar a radicalização da ditadura, chamado por parte da historiografia de “golpe dentro do golpe”, com o aprofundamento e verticalização do sistema autoritário e ações repressivas que já vinham sendo praticadas desde 1964.
O AI-5 permitiu a suspensão da garantia do habeas corpus para determinados crimes; dispôs sobre os poderes do Presidente para decretar intervenção federal (sem limites constitucionais) e estado de sítio; suspendeu direitos políticos e restringiu o exercício de direitos, além de ter promovido a cassação de mandatos eletivos; suspenso o Congresso Nacional, das Assembléias Legislativas e das Câmaras de Vereadores; entre outras providências.
Não há como questionar que atualmente, o Brasil tem um presidente que simpatiza abertamente com abordagens ultranacionalistas, caso dos antiglobalistas da direita radical. Os representantes da família Bolsonaro, instalados no centro do poder palaciano, dentre eles o Deputado Federal Eduardo Bolsonaro, são militantes de um populismo reacionário, e demonstraram em poucos meses de governo – haja vista a fala de Eduardo Bolsonaro acima mencionada – o caráter autoritário do bolsonarismo.
Ironicamente, até mesmo a Lei de Segurança Nacional, promulgada durante a ditadura militar para criminalizar e perseguir os inimigos daquele Estado, desde que considerada recepcionada pela Constituição de 1988, pode ser utilizada para enquadrar como crime a conduta do Deputado Eduardo Bolsonaro. A lei tipifica a conduta de propagandear, em público, processos violentos ou ilegais para alteração da ordem política ou social e, também proíbe a incitação à subversão da ordem política ou social e à animosidade entre as Forças Armadas ou entre estas e as classes sociais ou as instituições civis. Além disso, é claro, o Deputado Federal infringe uma série de normas da Constituição Federal de 1988, como explicitado na Nota de Apoio à Cassação do Deputado Federal Eduardo Bolsonaro.
Na terça-feira, dia 06/11, foi protocolado uma representação junto ao Conselho de Ética da Câmara pedindo a cassação do mandato de Eduardo Bolsonaro, por incitação à quebra da ordem democrática. Um pedido no mesmo sentido havia sido protocolado pela Rede. Ademais, foi apresentada notícia-crime junto ao STF, também pela declaração sobre o AI-5, discussão que envolverá os limites da imunidade parlamentar.
Quanto mais tempo temos sob a ordem do governo bolsonarista, evidencia-se que a tão aclamada “nova política” é, na realidade, uma espécie de repetição – com as devidas atualizações – da tradição autoritária nacional. É importante notar os usos políticos da categoria “interesse nacional”, pois foi justamente em 1968, quando as manifestações estudantis e críticas à ditadura por diferentes setores se fortaleceram por todo o Brasil, demandando participação política, que o então presidente Costa e Silva declarou ser do “interesse nacional” por um ‘basta’ à contrarrevolução”. Por mais que o desenho da ditadura militar já tivesse sido posto desde 1964, ainda assim, o AI-5 impõe o surgimento de estruturas de poder voltadas para uma forma total de dominação do político.
Nesse sentido, a declaração do Deputado Federal Eduardo Bolsonaro além de atentar contra a Constituição de 1988 e o Estado Democrático de Direito, também faz alusões ao período ditatorial militar, de forma saudosista ou simpatizante. E, ademais, demonstra como a ausência de um processo de rememoração coletiva acerca do recente passado autoritário brasileiro representa, primeiramente, uma condição de possibilidade de ascensão, via eleição, de um governo composto por sujeitos não apenas atrelados ao último regime militar, mas saudosos a ele e, sequencialmente, dispostos a negar suas práticas repressivas como estratégia de legitimação do passado e, por consequência, da atual condução autoritária do político.
Por Vanuza Nunes [1], Jean Jerônimo [2] e Milena Angulo [3]
Leia mais em:
“Facing Up to the Democratic Recession” – https://www.journalofdemocracy.org/articles/facing-up-to-the-democratic-recession/
[1] Mestre em Direito pela UFMG. Pesquisadora do Centro de Estudos sobre Justiça de Transição da UFMG (CJT/UFMG).
[2] Graduando em Direito pela UFMG. Extensionista do Centro de Estudos sobre Justiça de Transição da UFMG (CJT/ UFMG).
[3] Graduanda em Direito pela UFMG. Extensionista do Centro de Estudos sobre Justiça de Transição da UFMG (CJT/ UFMG).