outubro 21, 2020
Em entrevista ao jornal Deutsche Welle Brasil no último dia oito de outubro, o vice-presidente Hamilton Mourão, além de elogiar a abordagem do governo da pandemia de coronavírus – apesar dos dados destacadamente negativos do Brasil –, disse que o torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, condenado civilmente por ter torturado presos políticos durante a ditadura militar, era um “homem de honra” e respeitador dos direitos humanos.
Diante dessa declaração do vice-presidente, questiona-se: qual é a sua compreensão a respeito dos direitos humanos? Por que os mais altos membros do governo, presidente e vice, insistem em defender um torturador e o fazem impunemente?
O Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade aponta que Ustra foi um destacado torturador da ditadura civil-militar e é responsável por ao menos 45 mortes e desaparecimentos forçados no período em que esteve à frente do DOI-CODI. Entre as vítimas estavam inclusive mulheres grávidas e crianças, submetidos aos mais variados métodos de tortura física e psicológica como afogamento, pau-de-arara, eletrochoque, estupro, espancamento.
Sua presença nos relatos de tortura é recorrente. Entre eles, o de Criméia Alice Schmidt, grávida à época, que descreveu:
“Pela manhã, o próprio comandante major Carlos Alberto Brilhante Ustra foi retirar-me da cela e ali mesmo começou a torturar-me […]. Espancamentos, principalmente no rosto e na cabeça, choques elétricos nos pés e nas mãos, murros na cabeça quando eu descia as escadas encapuzada, que provocavam dores horríveis na coluna e nos calcanhares, palmatória de madeira nos pés e nas mãos. Por recomendação de um torturador que se dizia médico, não deviam ser feitos espancamentos no abdômen e choque elétricos somente nas extremidades dos pés e das mãos (COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE. Capítulo 9, p. 368).”
De acordo com Gilberto Natalini, também vítima, o Coronel “ria, debochava e tirava sarro” dos presos que ele torturava. Em depoimentos a CNV, Ustra confirmou ter ensinado técnicas de tortura quando foi instrutor da Escola Nacional de Informações. As práticas por ele instituídas no DOI-CODI passaram a fazer parte do currículo dos cursos de formação.
Há várias medidas para enfrentar o passado de graves violações a direitos humanos que ocorreram durante a ditadura civil-militar, todas relevantes e interconectadas e, que, portanto, devem ser encaradas de maneira holística. Entre elas a busca pela verdade, reformas institucionais, expurgos no serviço público, reparações às vítimas e julgamentos individuais de abusos cometidos no período.
Reconhecido pela ONU, o direito à memória e à verdade busca trazer a público as informações sobre as violações de direitos humanos escondidas pelos regimes repressivos, contribuindo para o processo de reeducação e transformação de uma sociedade formada em bases autoritárias para uma sociedade democrática e respeitadora dos direitos humanos. Além disso, esclarecer a verdade sobre o passado de violações é essencial para fortalecer e facilitar a busca das vítimas por reparação aos danos por elas sofridos e por responsabilização dos seus violadores.
A declaração de Mourão merece reprimenda e nada mais é do que revisionismo histórico, um ataque direto às vítimas e à memória e à verdade sobre a participação direta de Brilhante Ustra em atos de tortura, comprovados pela Comissão Nacional da Verdade e reconhecidos civilmente pelo Superior Tribunal de Justiça. Somada às ações empreendidas pelo governo pela desconstrução da memória da ditadura militar representa uma ameaça ao processo longo e contínuo de democratização do Brasil. Passa a mensagem institucional de que o Governo não está comprometido com o projeto constituinte inaugurado em 1988, que se posiciona expressamente contra esses crimes.
A Constituição da República de 1988 é marco no processo de redemocratização e contém mensagem inequívoca sobre os crimes contra a humanidade, que são imprescritíveis e insuscetíveis de anistia (Artigo 5º, XLIII, XLIV). Portanto, é dever do Estado Brasileiro investigar e punir crimes como os praticados por Carlos Alberto Brilhante Ustra.
Militares à frente da mensagem “ditadura assassina” pintada em uma parede. Autor desconhecido.
Ainda há um longo caminho no reconhecimento e responsabilização pelos crimes contra a humanidade praticados durante a ditadura militar. Isto porque, além dos ataques a reparação, memória e verdade vivenciados nos últimos anos, parcela dos magistrados sustenta que as graves violações de direitos perpetradas por agentes estatais foram anistiadas e perdoadas pela sociedade.
Foi nesse sentido o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153 ajuizada pelo Conselho Federal da OAB para que o Supremo Tribunal concedesse à Lei de Anistia interpretação conforme a Constituição, em relação à qual resta pendente um recurso.
Apesar de decisões favoráveis em primeira instância, a maioria das ações criminais e de reparação ajuizadas são extintas sem julgamento de mérito, julgadas improcedentes ou encontram barreira no Supremo Tribunal Federal. Foi o que ocorreu na Reclamação Constitucional nº 18.686, em que a Ação Penal recebida contra os torturadores de Espedito de Freitas foi suspensa. São omissões como esta que renderam ao Brasil duas condenações perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos: os casos “Gomes Lund e outros” e “Vladimir Herzog e outros”.
Desde o início, o governo Bolsonaro presta homenagens ao período de exceção e empreende ações de desmonte das medidas de reparação, memória e verdade.
Um exemplo é a demissão de Eugênia Gonzaga, ex-presidente da Comissão de Mortos e Desaparecidos, em agosto de 2019, após ela reconhecer que Fernando Santa Cruz, pai do atual presidente da OAB, foi assassinado pelo regime militar. Já em janeiro de 2020, o regimento da Comissão de Mortos e Desaparecidos, criada em 1995, foi modificado, diminuindo suas atribuições e abrindo brechas para a sua extinção. A CEMDP não pode mais, por exemplo, emitir atestados de óbito reconhecendo como causa da morte de vítimas a perseguição política do Estado. As mudanças também limitaram a busca pelos corpos de pessoas desaparecidas na ditadura.
Como exigir de um governo o respeito aos direitos humanos e a necessidade de sua promoção – que é essencial à democracia – se ele sequer reconhece a sua legitimidade e importância? Como exigir que as instituições, em especial as Forças Armadas, funcionem de maneira democrática se os membros do alto escalão do Exército se recusam a condenar o passado de violações de direitos humanos promovido por eles?
Como já mencionado, o uso de estratégias de desinformação e de revisionismo histórico são constantes do governo Bolsonaro. Essas ferramentas fazem parte da trajetória política do presidente, e acompanhadas pelo vice, foram evidenciadas durante a campanha eleitoral de 2018. Dessa forma, quaisquer expectativas de que, uma vez eleito, seu governo seria distinto, que já pareceriam ilógicas considerado o histórico, são cotidianamente contrariadas.
Veja-se: no início de 2019, Bolsonaro ordenou que o Golpe Militar de 1964 fosse festejado, como uma data positiva, negando a quebra institucional que gerou e o regime de exceção, pautado por violações de direitos humanos que o golpe inaugurou. Em visita à Israel, o presidente, negando as informações do Centro de Memória do Holocausto Yad Vasehm que acabara de visitar, afirmou equivocadamente que o nazismo foi um movimento de esquerda.
Seguem os exemplos de afirmações inverídicas pelo presidente: Bolsonaro alegou que Fernando Santa Cruz, morto pela forças da repressão durante a ditadura, teria sido eliminado por colegas de militância e que Miriam Leitão teria sido presa enquanto se dirigia para juntar-se à Guerrilha do Araguaia, ambas sem qualquer suporte factual.
Além da propagação de desinformação, o governo Bolsonaro também já demonstrou seu interesse de dificultar o acesso a informações públicas adequadas e de qualidade. Por exemplo, como o caso da adoção de uma estratégia de divulgação dos dados da pandemia de Covid-19 que dificultava o acompanhamento e a fiscalização do desenvolvimento da doença no país.
A defesa de Ustra pelo vice-presidente Mourão, dessa forma, não deve ser vista como arroubo ou exceção. A mesma defesa já foi feita pelo presidente, exaltando-o como herói e convenientemente deixando de lado o reconhecimento judicial de que Ustra foi um dos grande torturadores da Ditadura Militar.
A estratégia de desinformação adotada pelo governo Bolsonaro implica uma violação do dever constitucional de transparência e publicidade da administração pública. Como já dito, ao adentrar em um revisionismo histórico que nega a crueldade e o crimes cometidos pelo e em nome do governo militar, o presidente e o vice violam o direito à memória e à verdade, em relação às vítimas da repressão durante a ditadura e os deveres constitucionais e obrigações internacionais do Brasil de investigar, punir e reparar os crimes contra a humanidade cometidos naquele período.
Negar o passado e todas as evidências históricas contrárias às alegações de Bolsonaro e Mourão tem também como consequência o desfazimento de uma base comum racional sobre a qual é possível se estabelecer o debate e o dissenso democrático. Essa base compartilhada é substituída pelas palavras de um líder infalível, aprofundando a polarização e reforçando o poder autoritário dessa figura.
Se as tentativas de estabelecer um constitucionalismo transicional no Brasil já vinham sendo impedidas antes mesmo de Bolsonaro e Mourão chegarem ao poder, o novo cenário só tende a agudizar essa tensão, em sentido contrário: a de declínio da democracia.
Uma das possibilidades institucionais de resistir a esse movimento reside justamente numa atuação coerente e comprometida do Judiciário em coibir os abusos como o de Mourão. evitando que mais uma pedra seja retirada da base democrática brasileira: a de negação total do uso de tortura e da necessidade de punir, e não premiar, torturadores.
Como sabemos, infelizmente, o Judiciário tem sido refratário a demandas que buscam responsabilizar violadores de direitos humanos que atuaram durante a ditadura militar. Entretanto, é sempre tempo de voltar à questão da anistia, e a colocação da ADPF 153 em pauta pelo STF, especialmente no cenário atual, é, mais uma vez, uma chance de o país finalmente cumprir suas obrigações constitucionais e internacionais de investigar, punir e reparar violações de direitos humanos. Mandaria, também, um importante sinal do funcionamento de um sistema de freios e contrapesos entre instituições constitucionais, tão questionado, atacado e suprimido ultimamente.
Por Bruno Braga de Castro [1], Mariana Rezende Oliveira [2] e Mariana Tormin Tanos Lopes [3].
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[1] Graduando em direito pela UFMG. Extensionista e pesquisador associado ao CJT-UFMG.
[2] Mestre e bacharel em direito pela UFMG. Pesquisadora associada ao CJT-UFMG.
[3] Mestranda em direito pela UFMG. Pesquisadora do CJT-UFMG.