dezembro 2, 2020
Na última semana, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) autorizou a realização de audiências de custódia por videoconferência, em caráter excepcional, durante a pandemia da Covid-19. A decisão adotada em Resolução representa uma mudança de entendimento do órgão, que havia proibido as audiências de custódia remotas anteriormente.
A audiências de custódia consistem na imediata condução da pessoa presa em flagrante delito perante ao juízo competente. Com o início da pandemia e a adoção de medidas de contenção da propagação do vírus, foram suspensas em março deste ano. Assim, as prisões em flagrante estavam sendo analisadas pelo juiz apenas com base nos documentos do processo, sem contato com o preso.
Em outubro, os tribunais de alguns estados do país retomaram a realização das audiências de custódia presencialmente, com a implementação de medidas sanitárias. Agora, com a decisão mais recente do CNJ, surgem novas discussões acerca da legitimidade do procedimento feito remotamente. Isso porque a audiência é um importante instrumento para a garantia de direitos fundamentais do sujeito submetido à prisão.
Afinal, pode a experiência virtual da audiência de custódia se equiparar ao contato pessoal e presencial entre a pessoa presa e o juiz? Ela cumpre satisfatoriamente o papel do instituto?
A audiência de custódia é um procedimento obrigatório, segundo o qual a pessoa presa em flagrante delito deve ser apresentada à autoridade judicial em até 24 horas após a prisão. Devem estar presentes o advogado constituído ou Defensor Público, bem como o membro do Ministério Público.
As audiências de custódia foram implementadas no sistema de justiça criminal brasileiro a partir da Resolução nº 213 do CNJ, de 15 de dezembro de 2015. Elas têm como uns de seus fundamentos a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (ou Pacto de São José da Costa Rica) e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário.
Contudo, o instituto somente foi incorporado à legislação processual penal brasileira através da Lei 13.964/2019, conhecida como “Lei Anticrime”. Ela alterou a redação do artigo 310 do Código de Processo Penal para tornar obrigatória a realização da audiência de custódia sempre que houver a prisão em flagrante.
É por meio da audiência de custódia que o juiz irá avaliar a legalidade da prisão e a necessidade de sua manutenção, bem como a integridade física e psíquica do preso, que deverá ser questionado acerca das circunstâncias nas quais ocorreu a prisão e eventuais maus-tratos sofridos. Na oportunidade, serão ouvidos também o Ministério Público e a defesa técnica, que poderão formular perguntas à pessoa presa e pedidos ao magistrado. Por fim, o juiz decidirá se a prisão em flagrante deve ser relaxada, convertida em prisão preventiva, substituída por medidas cautelares diversas da prisão ou se é caso de conceder a liberdade provisória, com ou sem fiança.
Nesse sentido, a audiência de custódia tem papel fundamental de assegurar o respeito aos direitos da pessoa submetida à prisão e de coibir a tortura e abusos policiais, funcionando como espécie de controle externo da atividade policial. Além disso, contribui para o combate ao encarceramento em massa por propiciar a identificação de prisões arbitrárias e ilegais. A importância do procedimento se destaca quando são considerados os altos índices de letalidade policial e a taxa de aprisionamento do país.
A realidade do encarceramento no Brasil. Foto: Autor desconhecido.
Trata-se do momento no qual há contato direto e pessoal entre a pessoa presa e a autoridade competente para decidir sobre o seu destino nos próximos meses, ou até mesmo anos de sua vida. A implementação e a obrigatoriedade legal das audiências de custódia são, portanto, uma conquista em matéria de direitos humanos, que se coaduna com os princípios constitucionais.
As audiências de custódia voltaram aos holofotes quando houve a suspensão do expediente presencial no Poder Judiciário, em razão da pandemia de Covid-19. Visando regulamentar o novo formato das atividades, o CNJ aprovou a Resolução nº 329, em 30 de julho.
Em geral, ela estabelece critérios para a realização de atos processuais por videoconferência, durante o estado de calamidade pública, com o objetivo de preservar o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa. Seu artigo 19, entretanto, proibiu a realização por videoconferência das audiências de custódia.
Na votação, a maioria foi favorável à proposta do presidente do CNJ, Ministro Dias Toffoli. Ele defendeu que “o sistema de videoconferência vai de encontro à essência do instituto da audiência de custódia, que tem por objetivo não apenas aferir a legalidade da prisão e a necessidade de sua manutenção, mas também verificar a ocorrência de tortura e maus-tratos”. Ou seja, o entendimento era que a realização da audiência de custódia remota impossibilitaria ao juiz verificar se a pessoa presa foi vítima de violência policial.
A decisão repercutiu e a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) requereu ao Supremo Tribunal Federal (STF) a declaração de inconstitucionalidade do artigo 19. Na petição, a AMB afirma que, em tempos de pandemia, seria mais prejudicial ao preso a não realização da audiência de custódia do que sua realização por meio virtual, excepcionalmente.
Ainda não houve decisão do STF sobre esse pedido. Contudo, alguns meses depois, o CNJ aprovou nova Resolução que alterou a redação do artigo 19. Na Resolução nº 357, de 26 de novembro de 2020, a realização de audiências de custódia por videoconferência é permitida “quando não for possível a realização, em 24 horas, de forma presencial”.
A proposta foi apresentada pelo novo Presidente do CNJ, Ministro Luiz Fux, que defendeu o mesmo entendimento da AMB. Segundo ele, “para momentos excepcionais, precisamos ter medidas excepcionais” e realizar a audiência de custódia por videoconferência seria melhor do que não realizar. Fux disse, ainda, que não houve denúncias de possíveis torturas negligenciadas pelas audiências remotas.
A Resolução prevê que, preferencialmente, as audiências devem ser realizadas presencialmente. Mas, poderão ser realizadas por videoconferência quando isso não for possível, desde que observados os requisitos. Devem ser instaladas câmeras de 360 graus e uma câmera externa, para monitorar a entrada do preso. O preso deverá permanecer sozinho na sala, possibilitada apenas a presença do defensor ou do advogado ou, ainda, do Ministério Público. Por fim, deve ser feito exame de corpo delito antes da audiência.
A nova redação do artigo 19, todavia, não explicita quais os motivos cabíveis para essa impossibilidade de realização presencial. O novo panorama gerou reações de entidades que defendem os direitos humanos.
Ainda em junho, quando a matéria foi incluída em pauta pela primeira vez, cerca de 150 entidades enviaram um ofício ao CNJ defendendo a proibição das audiências de custódia remotas. Na mesma ocasião, foi lançada a campanha #TorturaNãoseVêpelaTV nas redes sociais.
O documento afirmava que “a audiência de custódia não cumpre sua função precípua quando realizada por meio virtual”. Isso porque não seria possível averiguar por meio de uma tela a ocorrência de possíveis torturas ou maus-tratos. Assim, defendiam um cronograma para a retomada gradual da realização das audiências de custódia presenciais, seguindo orientações das autoridades sanitárias.
Além disso, o ofício lembra que durante as votações do “Pacote Anticrime”, o Congresso rejeitou a proposta de realização por videoconferência de atos processuais que dependessem da participação de réu preso. Foi incluída na legislação uma proibição expressa à realização das audiências de custódia por videoconferência. Esse dispositivo foi vetado pelo Presidente, mas a análise do veto pelo Congresso ainda está pendente.
A nova Resolução gerou outra onda de repúdio. Em Nota, entidades avaliam que a adequação aos requisitos para a realização das audiências remotas significaria um montante de recursos muito maior do que a adequação das salas de acordo com as medidas sanitárias. Assim, defendem que seja adotado um modelo presencial e seguro para as audiências, a exemplo do que foi adotado em alguns estados.
Vale destacar que, embora a pandemia tenha reacendido a discussão, a tentativa de alguns atores do sistema de justiça de implantar a audiência de custódia por videoconferência não é nova. Há até relatos anteriores de juízes que tentaram realizá-la por meio do WhatsApp. Com a justificativa de garantir a celeridade processual, esses argumentos costumam desconsiderar o papel da audiência na proteção da pessoa presa.
Dados do próprio CNJ demonstram uma queda de cerca de 83% na detecção de tortura e maus-tratos desde que as audiências de custódia foram suspensas. Como destaca a Associação para a Prevenção da Tortura (APT), em março de 2020 foram realizadas 11.900 audiências de custódia no país, nas quais se registraram 1.033 relatos ou indícios de tortura e maus-tratos. Já entre abril e maio, este número caiu para 403 casos entre 28.510 prisões efetuadas.
Os casos que chegam à mídia todos os dias não permitem concluir que houve uma redução drástica da violência policial nesse período. Assim, os dados explicitam que as audiências de custódia são imprescindíveis para revelar e combater a tortura e os maus-tratos policiais.
Por fim, cabe concluir que é falsa a suposta dicotomia entre a realização por videoconferência ou a não realização das audiências de custódia. Diante da crescente flexibilização das medidas de distanciamento social, com o funcionamento de shoppings, bares e casas de show, desde que adotadas as devidas precauções, não parece verdadeiro que inexista alternativa segura para a realização presencial das audiências.
As medidas de enfrentamento à Covid-19 devem ser pensadas à luz dos direitos humanos. Logo, é fundamental a criação de soluções que garantam tanto os direitos humanos quanto a segurança sanitária para que as audiências de custódia cumpram verdadeiramente seus objetivos.
Por Ana Carolina Rezende Oliveira [1] e Luísa Mouta Cunha [2].
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[1] Doutoranda em Direito na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mestre em Direito na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisadora associada ao Centro de Estudos sobre Justiça de Transição (CJT/UFMG).
[2] Graduanda em Direito na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Extensionista do Centro de Estudos sobre Justiça de Transição (CJT/UFMG).