março 29, 2019
No início da semana (25/03), a Presidência da República divulgou a ordem para que sejam realizadas “as comemorações devidas” no dia 31 de março, data que marcará o aniversário de 55 anos do golpe civil-militar de 1964, pontapé de uma ditadura que durou 21 anos no Brasil. Desde a redemocratização até a eleição de Bolsonaro, celebrações do golpe pelas Forças Armadas deram-se de maneira discreta. Manifestações que ultrapassaram as fronteiras da caserna, foram, até então, recebidas com punições e crises políticas.
Com a eleição de Bolsonaro, as circunstâncias se modificaram radicalmente: ao contrário de seus antecessores, o presidente opõe-se à versão histórica do golpe e celebra abertamente a data, além de contestar testemunhos e as próprias violências cometidas pelos militares, quando não tenta justificar o uso de tortura e de execuções extrajudiciais no período.
As eventuais comemorações estão ainda cercada de incertezas. Já o apoio governamental à celebração da data que marca o início da ditadura civil-militar representa não apenas uma polêmica tentativa de negacionismo histórico, mas também mais um sinal de degradação da democracia, como mostraremos a seguir.
O autoritarismo está de volta às tendências políticas, mesmo que golpes de Estado já não sejam tão comuns. Stephan Haggard e Robert R. Kaufman desenvolvem a teoria da “Síndrome da Democracia Fraca”, segundo a qual três componentes institucionais combinam-se com fatores políticos criando cenários de retrocesso autoritário: militarismo, institucionalização fraca e desempenho econômico insatisfatório. Desses destaca-se o chamado “militarismo”: a dificuldade de governos democráticos de estabelecer controle efetivo sobre os militares.
Alguns dos indicadores desse componente são (1) a presença de militares em órgãos chave de tomadas de decisão, como ministérios e (2) o controle do orçamento e de processos de nomeação por militares, fora de controle civil. Esses aspectos são acompanhados por narrativas que retratam as Forças Armadas como tendo um papel de construção nacional ou desenvolvimento, ou que as apresentam como árbitros neutros do processo político.
O militarismo aumenta a vulnerabilidade da democracia de três formas:
A presença massiva de representantes ligados às Forças Armadas no governo Bolsonaro – presença que tem aumentado desde a posse – deixa clara a crescente centralidade política de uma instituição que nunca reconheceu os erros e as responsabilidades pelas violações cometidas durante a ditadura militar.
Sendo assim, a posição do presidente de celebrar oficialmente um golpe de Estado que derrubou um governo democrático deve ser vista como sinal de alerta para os observadores da democracia brasileira. A atenção é requerida não apenas pelo fato em si, mas também pelo contexto de flagrante violação do direito à memória e à verdade e de seguidas crises políticas no Brasil.
Esse tipo de declaração, que desafia a construção de uma verdade factual, inteiramente pública, sobre as violações perpetradas por uma ditadura nos leva a compreender, ainda com mais propriedade, o desafio permanente do exercício da memória coletiva, mesmo em um ambiente democrático.
Diante da turbulência causada pelo anúncio da Presidência, diversas instituições e organizações da sociedade civil agiram para conter possíveis homenagens e reforçar o sofrimento das vítimas da ditadura e seus familiares. O Ministério Público Federal recomendou que as Forças Armadas e suas unidades afins se abstenham de comemorar o período de exceção inaugurado há 55 anos.
Já a Defensoria Pública da União ajuizou Ação Civil Pública questionando a ordem do presidente, que pode violar princípios constitucionais e configurar ato de improbidade administrativa; duas ações populares ressaltam a violação de direitos humanos no período; e vítimas da ditadura pediram ao Supremo Tribunal Federal, por meio de Mandado de Segurança, para que suspenda a determinação de comemorar a data, que viola o direito à memória e à verdade.
Vale ressaltar que a Comissão Nacional da Verdade (CNV), instituída para investigar as violações de direitos humanos cometidas entre 1946 e 1988 no Brasil, identificou diversos métodos de torturas físicas e psicológicas empregados por agentes estatais contra opositores políticos, além de detenções arbitrárias, desaparecimentos forçados, execuções extrajudiciais, violência sexual, ocultações de cadáveres e falseamento de laudos de necrópsia. A CNV identificou também 434 pessoas mortas ou desaparecidas em razão da política de Estado autoritariamente implantada contra todos aqueles considerados seus opositores.
Tais crimes configuram-se como crimes contra a humanidade, que são violações cometidas de modo sistemático e massivo como parte de uma política estatal contra uma população civil e, por isso, expressamente proibidas no Direito Internacional. A gravidade desses crimes faz com que eles sejam imprescritíveis, isto é, seus perpetradores devem ser investigados e punidos a qualquer tempo, sendo incompatível a aplicação de anistia, da prescrição penal ou de outra excludente de ilicitude/punibilidade. O descumprimento desse dever pelo Brasil ensejou duas condenações internacionais.
É importante estabelecer distinções entre narrativas e formulação de interpretações ou opiniões, principalmente em se tratando de instâncias oficiais. O exercício da memória coletiva se impõe, mais do que nunca, como um desafio para a sociedade brasileira, que deve assimilar as violações investigadas e comprovadas e aprender com seu passado.
Diante da ausência de investigação e punição dos responsáveis por violações de direitos humanos, é de extrema importância evitar que “comemorações” do golpe de 1964 ocorram. O momento é de luta para exposição da verdade relativa a tais violações, manutenção da memória dos que lutaram pela democracia e aprendizagem, para que não se repita.
Por isso, é particularmente preocupante quando um presidente da república recomenda a comemoração daquele que foi reconhecido oficialmente como um golpe de Estado, responsável por centenas de violações de direitos humanos. Esse tipo de declaração provoca ecos na sociedade que reverberam em ambivalências ou dúvidas sobre fatos comprovados e completamente estabelecidos.
É fundamental para as sociedade pós-autoritárias recordar, reconhecer, reparar e fazer justiça acerca das violações de direitos humanos perpetradas pelo Estado. Tais processos são imprescindíveis para a garantia não só da não repetição das violações, mas do ambiente democrático sadio para as futuras gerações.
Revisto em 01/04/2019.
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