setembro 9, 2020
No dia 23 de agosto, após ser questionado sobre cheques que teriam sido depositados por Queiroz na conta da primeira-dama, Bolsonaro ameaçou um jornalista: “Minha vontade é encher tua boca na porrada”. A ameaça física direta gerou grande repercussão e a mesma pergunta foi repetida mais de 1 milhão de vezes em menos de 24 horas por usuários do Twitter, alcançando o patamar de assunto mais discutido da plataforma no Brasil.
Todavia, esse não foi o primeiro ataque do presidente a membros da imprensa. Segundo a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), em 2019 houve um aumento de 54,07% no número de casos de ataques a veículos de comunicação e jornalistas em relação ao ano anterior, totalizando 208 registros. Em 2020, já são 245 ocorrências apenas no primeiro semestre.
A multiplicação desses ataques não é casual. Ao contrário, trata-se de “uma estratégia definida e cada vez mais bem estruturada” de atuação do governo Bolsonaro. Qual seria, então, essa estratégia? Quais são seus objetivos? E, por fim, por que devemos nos preocupar com suas consequências?
Criada no governo João Figueiredo a partir da Lei 6.650 de 1979, a Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (SECOM) parece ser peça-chave para a compreensão de uma das facetas autoritárias do atual governo federal, que seria o sufocamento da liberdade de expressão e suas decorrências, tal como a liberdade de imprensa.
A atuação da SECOM junto a sites que divulgam notícias falsas é apontada pelo relatório da CPMI das Fake News que sugere que a Secretaria teria gasto cerca de 2 milhões de reais em sites inadequados, dentre eles os veiculadores de fake news, para a divulgação de anúncios publicitários referentes a reforma previdenciária.
A partir da divulgação desse relatório, em julgamento de contas referentes ao exercício financeiro de 2019, o TCU demonstrou preocupação em relação aos gastos exorbitantes do governo Jair Bolsonaro com publicidade e a um “possível desvio de finalidade no uso do aparato estatal para perseguir grupos ou personalidades que, no exercício da liberdade de expressão ou de imprensa, estejam supostamente em oposição ao governante”, de acordo com o Ministro Bruno Dantas.
A “possibilidade” vislumbrada pelo Ministro do TCU, todavia, deve ser retirada da frase, uma vez que o desvio de finalidade no uso do aparato estatal para perseguição de personalidades se mostrou evidente a partir do caso Marcelo Adnet. Em paródia ao vídeo lançado pela Secretaria Especial da Cultura chefiada pelo ator Mário Frias, o humorista faz sátira da atuação do ex-ator e, principalmente, do ar “sinistro” de um discurso de exaltação de uma “História Nacional”, que deveria valorizar os verdadeiros heróis da pátria, em um tom “a la Goebbels”. A partir desse caso, a SECOM lançou nota em sua conta no Twitter afirmando que o humorista fazia “pouco caso dos brasileiros” ao publicar tal vídeo e que Adnet seria “contra a bondade, o amor ao próximo, o sacrifício por inocentes”.
A partir desse caso, fica evidente que o governo federal constrói seus inimigos e, a partir de um discurso oficial, promove a perseguição a seus opositores.
Outro mecanismo que tem sido utilizado para essa finalidade é a Lei de Segurança Nacional (LSN). Com a redação dada por um Decreto-lei de 1969, foi um dos instrumentos jurídicos mais utilizados pelo regime militar para perseguir opositores, sob o pretexto de defesa da segurança nacional e da ordem política e social. O texto atual, datado de 1983, mantém lógica similar, tratando de crimes contra “a integridade territorial e a soberania nacional”; “o regime representativo e democrático, a Federação e o Estado de Direito”; e “a pessoa dos chefes dos Poderes da União”.
A utilização da LSN no contexto democrático é controversa. Seu texto é visto como herança da Ditadura e uma espécie de garantia dada aos militares durante o período de transição democrática. Além disso, são utilizados termos genéricos, que abrem ampla margem de interpretação e aplicação, favorecendo a possibilidade de sua utilização em prejuízo do réu para perseguições políticas. Por tais razões, sua revogação foi recomendada pela Comissão Nacional da Verdade.
Ainda assim, o governo Bolsonaro pediu várias investigações contra membros da imprensa com base na violação dessa lei. Em dois casos emblemáticos, o Ministro André Mendonça solicitou à Polícia Federal a abertura de inquérito contra o colunista Hélio Schwartsman e o cartunista Aroeira por supostamente caluniar ou difamar o Presidente da República. A LSN prevê pena de 1 a 4 anos de reclusão por esse crime.
Obviamente, menções à LSN após 1988 não são exclusividade de Bolsonaro. Todavia, além da desproporcionalidade do pedido e da possível pena aplicada, preocupa que o Ministro esteja ultrapassando suas competências ao utilizar a Polícia Federal como um instrumento de defesa da presidência. O pedido de abertura de inquérito contra membros da imprensa que apresentaram posicionamento contrário ao governo delineia, novamente, um mecanismo de restrição ao debate público e perseguição aos seus opositores.
Esse cenário indica que se trata de um sistema estruturado e organizado, não de bravatas isoladas proferidas pelo presidente. O objetivo desse sistema é semear desconfiança em relação ao trabalho dos jornalistas, evitar a prestação de contas à sociedade e manter o controle do debate público. Dessa forma, constrói-se a imagem não de opositores dentro do jogo político, mas de inimigos comuns.
Essa faceta autoritária aproxima o governo federal dos regimes fascistas. Como ressalta Jason Stanley, “um regime fascista não tem opositores: tem inimigos. E eles se multiplicam na medida em que divergem dos donos do poder – que no mesmo movimento reafirmam também seu círculo de ‘amigos’, definidos pelo grau de adesão incondicional a seus princípios”. A partir da narrativa em torno da oposição entre amigos e inimigos, a violência torna-se a única forma possível de disputa política, o que inviabiliza o debate público.
Não se limitam ao Executivo ações que restringem a liberdade de expressão e de imprensa. Diante das tentativas de intimidação e controle da imprensa por Bolsonaro e seus seguidores, a resposta institucional tanto do Judiciário quanto do Legislativo tem sido, na melhor das hipóteses, dúbia. Soma-se a isso a utilização de demandas judiciais para buscar censurar reportagens e vozes críticas a detentores de poder, não só a nível federal, como também localmente.
Mais grave, é o fato de que essas demandas têm tido sucesso no Judiciário. Recentemente, pode-se citar três casos de destaque: a censura à revista Crusoé, que publicou uma reportagem sobre uma possível ligação entre Dias Toffoli e Marcelo Odebrecht; a censura ao Jornal GGN, em que foi ordenada a retirada do ar de todas as reportagens sobre o BTG Pactual, banco criado pelo ministro da economia Paulo Guedes e, finalmente, a censura prévia à Globo, proibida judicialmente de exibir documentos da investigação sobre Flávio Bolsonaro e o esquema de peculato, conhecido como “rachadinha”.
Esses exemplos constroem um cenário em que, ainda que o direito à liberdade de imprensa e à liberdade de expressão estejam constitucionalmente previstos, não faltam aqueles dispostos a acionar o Judiciário para restringir esses direitos, bem como aqueles prontos para conceder judicialmente tal restrição.
Nesse sentido, torna-se significativa a afirmação de Clarissa Gross de que a “liberdade de expressão no Brasil não é pra valer”. Se a Constituição de 1988 mudou o padrão do debate público de censura prévia para debate aberto, restam ainda muitas incertezas sobre o que cidadãos e cidadãs podem expressar, sem temer um condenação judicial.
Foto: Gustavo Bezerra/Fotos Públicas. Brasília-DF, 18/09/2019. Artistas, sociedade civil e parlamentares durante manifestação na comissão censura nunca mais.
Frequentemente, alegando a necessidade de proteger a honra de políticos, personalidades públicas e até de instituições, o Judiciário brasileiro concede decisões que reduzem o escopo da informação pública e da possibilidade de controle cidadão. O Judiciário que deveria ser acionado para proteger o cerceamento do livre fluxo de informações, torna-se, assim, um ator que contribui para o estreitamento do espaço público de debate.
Diante de um quadro de ataques sistemáticos pelo Executivo à imprensa, o comprometimento frouxo com a liberdade de expressão e de imprensa pelo Judiciário contribui para um cenário em que as ameaças ao livre debate, à crítica e ao exercício do controle social encontre terreno fértil no país.
Apesar da ruptura e do marco institucional representado pela Constituição de 1988, o governo de Jair Bolsonaro traz à tona as consequências de uma justiça de transição pouco eficiente. A eleição para a Presidência da República de um Deputado Federal que em plenário saudou o notório torturador Brilhante Ustra parece ter alçado à institucionalidade um jeito de governar com consideráveis aproximações em relação ao regime militar.
Nesse sentido, como este texto tratou sobre liberdade de expressão e liberdade de imprensa, cabe mencionar uma aproximação, notada por alguns veículos jornalísticos, entre o “cala a boca” de Jair Bolsonaro dirigido à imprensa e o “cala boca” também dirigido à imprensa do General Newton Cruz, que chefiou o Serviço Nacional de Informações (SNI) durante a Ditadura. É interessante notar e assistir a ambos os vídeos, do atual presidente e do general, para perceber que para além da coincidência de expressões, o tom ríspido e áspero com a imprensa é bem similar nos dois momentos.
Por Ana Carolina Rezende Oliveira [1], Júlia Guimarães [2] e Mariana Rezende Oliveira [3].
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[1] Doutoranda em Direito na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mestre em Direito na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisadora associada ao CJT – UFMG.
[2] Mestranda em Direito na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pesquisadora Bolsista (CAPES). Pesquisadora associada ao CJT-UFMG.
[3] Mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pesquisadora associada ao CJT-UFMG.