Democratizando: divulgação científica contra fake news.

julho 17, 2019

Brasil

Entre tantos feriados nacionais e internacionais, é fácil se perder em datas comemorativas e homenagens. No dia 8 de julho, por exemplo, é comemorado o Dia Nacional da Ciência e do Pesquisador Científico, em homenagem à criação da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), entidade que promove a produção científica do país, estimula os jovens a terem contato com a ciência desde cedo e divulga o saber científico para a sociedade.

A cada ano, a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e outras instituições promovem um evento aberto ao público que celebra a data e aproxima a ciência da sociedade. No dia 6 de julho de 2019, o Centro de Referência da Juventude, em Belo Horizonte, foi palco de uma mostra de divulgação científica, contando com a apresentação de projetos de várias áreas do conhecimento.

Foi difícil competir pela atenção em meio a oficinas de programação, impressão em 3D, experimentos bioquímicos e lançamento de aplicativos. Contudo, o Centro de Estudos sobre Justiça de Transição da UFMG (CJT/UFMG) marcou presença e pautou um tema de grande relevância: a interferência das fake news nas eleições e na democracia.

Democratizando: o projeto de divulgação científica do CJT.

O CJT/UFMG é um projeto de pesquisa e extensão dedicado ao estudo da justiça de transição, ou seja, dos processos de saída de regimes autoritários, como a ditadura enfrentada pelo Brasil entre 1964 e 1985, ou de períodos de conflito civil, como sofreu a Colômbia até a recente assinatura do Acordo de Paz. Os quatro pilares básicos da justiça de transição são a responsabilização, a reparação, o direito à memória e à verdade e as reformas institucionais.

  1. Responsabilização: a obrigação dos Estados de investigar, processar e punir as graves violações de direitos humanos cometidas durante o período autoritário, como forma de garantir o direito à justiça;
  2. Reparação das vítimas e de seus familiares: necessidade de reparar os danos e violências sofridos por meio de indenizações, restabelecimentos de cargos e empregos perdidos e, além disso, oferecendo reparações simbólicas, como anistias e pedidos públicos de desculpas;
  3. Direito à memória e à verdade: reconstrução da memória histórica, buscando revelar às vítimas, aos seus familiares e à sociedade a verdade por trás do período e de suas violações, contra as versões oficiais distorcidas pelos  regimes autoritários;
  4. Reformas institucionais: diante da necessidade de  interromper o legado de um período autoritário e violento, busca-se extinguir ou reformar instituições (como a polícia e  o Judiciário) responsáveis por violações. É realizada, por exemplo, pela  exclusão dos agentes perpetradores de crimes contra a humanidade e outros sujeitos envolvidos no regime de órgãos estatais e de posições de autoridade, de modo a reorganizar as instituições de forma democrática e remover leis autoritárias.

Para o CJT/UFMG, o debate acerca dessas medidas e de sua efetividade não deve ficar restrito ao ambiente universitário, mas também ocorrer na sociedade civil. Assim, reforça-se o direito à memória e à verdade como um direito coletivo e a importância de uma transição forte para um ambiente democrático saudável. Nesse sentido, diversas foram e são as atividades realizadas pelo grupo de modo a tornar mais acessível o conhecimento produzido na área.

Como exemplo, foi produzida a “Cartilha Justiça de Transição”, publicada pela Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais durante o evento “Resistir Sempre: Ditadura Nunca Mais” (2014). O CJT/UFMG também mantém em seu site o acompanhamento do andamento processual de ações penais de responsabilização de agentes que cometeram tortura e outros crimes durante o período da ditadura e ações cíveis de reparação das vítimas e seus familiares.

O grupo é membro permanente da Rede Latino-Americana de Justiça de Transição (RLAJT) e já firmou diversas parcerias, por exemplo, com o Grupo de Trabalho sobre Justiça de Transição do Ministério Público Federal, a Comissão da Verdade em Minas Gerais (COVEMG) e a Comissão da Verdade dos Trabalhadores e do Movimento Sindical em Minas Gerais (COVET-MG). O CJT/UFMG divulga em suas redes sociais notícias sobre justiça de transição e democracia ao redor do mundo e realiza o levantamento de espaços hoje voltados à educação sobre a repressão e resistência na ditadura, os chamados “Lugares de Memória”.

A ação mais recente do CJT/UFMG está justamente voltada para repensar a democracia, o autoritarismo e os atores sociais desses processos de forma didática e acessível. Trata-se da iniciativa Democratizando, da qual faz parte o blog e um  podcast, em fase de produção. No blog, destrinchamos fatos do cotidiano político brasileiro à luz das abordagens acadêmicas sobre crise da democracia. Em suma, mostramos na prática o que lemos nos livros: como, quando e se os sinais de declínio democrático têm se dado.  

Trata-se de um projeto de divulgação científica, ou seja, que busca ampliar o acesso aos nossos debates ao público não especializado. É, assim, um esforço extensionista ao propor uma aproximação entre academia e sociedade.

O podcast, em fase de produção, será  uma série temática que contará com episódios em formato de entrevistas e rodas de conversa. O seu lançamento e publicação estão previstos para o segundo semestre deste ano. Assim, blog e podcast estarão articulados em prol dos objetivos de defesa da democracia  e promoção dos direitos humanos que envolvem o CJT/UFMG.

Um dos principais novos desafios que enfrentados pela democracias é a desinformação, como a divulgação de notícias falsas e boatos. Atento a isso, o CJT/UFMG em parceria com o Grupo de Estudos em Sociedade da Informação e Governo Algorítmico (SIGA), enviou contribuição à Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos sobre a influência da desinformação em contextos eleitorais, em 2019. Foi esse o tema, também, que levamos para o Dia Nacional da Ciência e que vamos explorar a seguir.

Fake news e democracia

Pesquisadoras do CJT no Dia Nacional da Ciência. Foto de Felipe Viana. Todos os direitos reservados.

“É tudo boato” tem se tornado uma das expressões mais comuns deste novo século. Fatos cientificamente provados, como ser o planeta Terra redondo e a prevenção de doenças por meio de vacinas, têm sido colocados em xeque por uma onda de informações falsas que procuram desvirtuar a realidade ou mesmo disseminar a desinformação. Esse fenômeno, por sua vez, tem afetado diretamente as bases democráticas.

Numa tentativa de explicar esse fenômeno das fake news, muitos pesquisadores procuram uma definição para o termo “notícias falsas”, a fim de traçar estratégias para sua regulamentação. Para tanto, o Professor David Lazer, da Northeastern University, afirmou que para compreender o significado do termo fake news, é necessário diferenciar os conceitos misinformation e disinformation: o primeiro se refere ao uso de uma informação falsa e o segundo é o uso de uma informação falsa com o intuito de enganar. Nesse sentido, fake news apenas se enquadram neste último termo (LAZER, 2018)

As fake news têm o poder de influenciar desde a veiculação de teorias conspiratórias e de menor relevância, como o terraplanismo, até eleições e processos democráticos. A campanha pró Brexit, por exemplo, divulgou amplamente que não sair da União Europeia custaria mais de 470 milhões de dólares por semana ao país, afirmação que foi comprovada como enganosa.

Existem quatro formas de interferir no resultado de uma eleição democrática: 

  1. Manipular fatos e opiniões que instruem o voto dos cidadãos, por exemplo, através de relatos falsos da mídia social, bots e propaganda;
  2. Interferir no ato de votar (por exemplo, adulterar listas de registro eleitoral);
  3. Alterar os resultados da votação; e
  4. Minar a confiança na integridade da votação.

O pleno exercício da cidadania depende do acesso à informação e da possibilidade de fazermos nossas escolhas livres de impedimentos. Se a informação de um processo eleitoral é manipulada, a escolha individual por um candidato não estará sendo feita dentro das reais possibilidades do jogo democrático. Para além do momento eleitoral, a discussão política e o acompanhamento de sessões legislativas podem ser enviesados negativamente pelas fake news levando não só à criação de desinformação proposital, como também ao aumento da polarização nas redes.

Mas como as fake news realmente manipulam a opinião pública? 

O desenvolvimento tecnológico recente permitiu a criação dos Big Data. Eles podem ser definidos como “(…) conjuntos de dados extremamente grandes que podem ser analisados computacionalmente para revelar padrões, tendências e associações, especialmente relacionadas ao comportamento e às interações humanas” (Gurumurthy e Bharthur, 2018) .

Esses dados são coletados pelas plataformas virtuais, enquanto seus usuários as utilizam deixando o que chamamos de rastros virtuais  (footprints). Logo, cada clique, cada pesquisa, cada interação em redes sociais ou em aplicativos se agrupam em grandes volumes de informação que são trabalhados para traçar perfis. Essa técnica é chamada de perfilamento (profiling).

A partir do enquadramento de perfis, é possível direcionar individualmente  conteúdo específico capaz de influenciar um público pré-determinado e extremamente restrito. Desse modo, conhecendo bem cada usuário, as grande big tech (empresas de tecnologia) como Google, Microsoft, Facebook, Baidu, entre outras são capazes de direcionar conteúdos e manipular o acesso à informação, na medida em que cada grupo recebe apenas informações que elas julguem ser-lhes interessantes, criando as famosas “bolhas”. 

Nesse contexto, o processo democrático é fragilizado, já que as nossas escolhas estão sendo manipuladas por uma série de fatores, deixando à deriva problemas como privacidade e proteção de dados, acesso à informação, autodeterminação e os demais princípios que norteiam a esfera democrática.

O que resta como proposta?

A popularização do acesso à internet e a outras tecnologias trouxe muitos resultados positivos, como a facilitação do acesso à informação; a redução dos impactos da desigualdade socioeconômica na formação cultural dos indivíduos; a gênese de espaços de fala para classes historicamente excluídas, pluralizando o espaço público. Contudo, resultados negativos também surgiram desse processo, ocasionando impactos para além do espaço virtual.

As fake news são um claro exemplo dos efeitos negativos da maior facilidade em se usar a internet. As possibilidades de anonimidade, a velocidade do fluxo das informações e a existência de uma cultura de cidadãos/usuários que no passado não precisava, com frequência, avaliar a veracidade de uma informação, potencializa a instrumentalização dos meios virtuais com o intuito de manipulação social.

A democracia formal, apesar de positiva, não é suficiente. É preciso que seja substancialmente exercida por todos, de modo que os canais de participação possam ser devidamente utilizados pelos cidadãos para se fazerem ouvidos. A veiculação excessiva e veloz de informações gera um ambiente confuso e desorientador que, na ausência de  filtragem e classificação, dificulta o exercício efetivo de garantias constitucionalmente estabelecidas e a própria cidadania.

Nesse sentido, os problemas derivados da popularização do acesso à internet assumem relevância no projeto de efetivação da democracia e devem ser entendidos enquanto questões políticas que demandam a atuação ativa do Estado e de todos os sujeitos. Cabe também à sociedade o poder de exigir das autoridades competentes a promoção de políticas geradoras de estabilidade na internet, seja por meio de regulações específicas ou por estratégias de educação dos usuários.

Além disso, cada cidadão tem uma cota de responsabilidade na consolidação de um espaço seguro e saudável de uso de mídias. Cada um pode, no âmbito privado e público de sua vida, filtrar as informações que recebe, buscando confirmar em canais de comunicação segura sua veracidade; orientar aqueles que, em uma oportunidade qualquer, compartilham fake news, esclarecendo a importância de verificação das notícias; educar-se para não se tornar um propagador ou propagadora de fake news.

No Dia Nacional da Ciência, a equipe do CJT/UFMG conversou com vários visitantes da exposição, os quais comentaram sobre se já haviam sido enganados por fake news e como buscavam contornar a possibilidade de engano. Diversos mencionaram práticas, como as indicadas acima, que são simples e contribuem para a consolidação de uma cultura de correção informacional no meio virtual.

Por Sophia Pires Bastos [1], Álvaro Luis Ribeiro Reis [2], Luisa Mouta [3] e Gabriela Conrado [4].

Para mais informações, leia aqui:


1  Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFMG. Bolsista FAPEMIG. Pesquisadora do Centro de Estudos sobre Justiça de Transição (CJT/UFMG). Orientadora da Clínica de Direitos Humanos da UFMG (CdH/UFMG)

2  Graduando em Direito pela UFMG. Pesquisador do CJT/UFMG. Monitor nas disciplinas “Teoria da Constituição” e “Filosofia do Direito”.

3 Graduanda em Direito pela UFMG. Pesquisadora do CJT/UFMG.

4 Graduanda em Direito pela UFMG. Pesquisadora do CJT/UFMG.