abril 24, 2019
Em cerimônia de comemoração pelos cem dias de governo, no dia 11 de abril de 2019, o Presidente Jair Bolsonaro assinou o Decreto 9.759/2019, que “extingue e estabelece diretrizes, regras e limitações para colegiados da administração pública federal”.
Em termos práticos, o decreto promoverá a extinção de conselhos e comissões federais em que se efetiva a participação direta da sociedade civil por meio de deliberações e decisões sobre políticas públicas no Brasil. Geralmente ligados a ministérios, esses mecanismos, que agora se encontram sob ataque, fazem parte da prática democrática que se construiu de acordo com o projeto constituinte inaugurado em 1988.
Diante disso, questiona-se: em que medida esse decreto é compatível com a Constituição de 1988? Quais serão suas consequências e como ele se relaciona aos recentes ataques à democracia brasileira?
Em 5 de outubro de 1988, foi promulgada a Constituição brasileira. A data marca a ruptura com o regime autoritário instaurado pelo golpe de 1964 e o início de um processo inclusivo e participativo que abriu caminho para a construção de um Estado Democrático de Direito entre nós. A república brasileira tem como fundamentos, entre outros, a cidadania, a dignidade da pessoa humana e o pluralismo político.
Cabe situar aqui o decreto, que não especifica quais colegiados serão extintos, apenas enumera uma abrangente lista de possíveis afetados. Estão a salvo apenas as diretorias colegiadas de autarquias e fundações, as comissões de sindicância e de processo disciplinar e as comissões de licitação.
O próprio governo não sabe precisar ao certo o número de colegiados atualmente existentes junto à máquina administrativa federal. Os propósitos com a medida, entretanto, estão bem claros em uma das justificativas apresentadas pelo Ministro Onyx Lorenzoni: silenciar todas as formas de conflito, contestação e desacordo na formulação e implementação de políticas públicas pela administração pública federal. Isso porque, na sua visão, os Conselhos formariam “grupos de pressão” para “emplacar pleitos que não estão conforme a linha das autoridades eleitas democraticamente”.
A proposta aposta na centralização dos processos de tomada de decisão estatal e no aumento da distância entre administração pública e cidadãos, para supostamente conferir maior eficiência à gestão pública. Isto evidencia a concepção de democracia deste governo.
Além disso, a ausência de critérios bem delineados para a extinção e funcionamento dos órgãos remanescentes abre espaço para instituir justamente aquilo que o governo diz querer evitar: o aparelhamento da máquina pública.
Este não é o primeiro episódio em que o governo Bolsonaro usa sua competência legislativa para atacar a democracia brasileira. Em janeiro de 2019, Hamilton Mourão, à época Presidente Interino, ampliou, também por decreto (9.690/2019), o rol de legitimados para impor sigilo a documentos oficiais. Classificado por especialistas como retrocesso, o decreto violava princípios basilares da Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/2011), na contramão da publicidade que deve reger a administração pública. Houve, inclusive, movimentação da Câmara dos Deputados para suspender o decreto editado por Mourão que, posteriormente, acabou sendo revogado.
Em razão da sua manifesta inconstitucionalidade, o decreto que extingue a participação na administração pública merece tratamento equivalente. Inclusive, foram protocolados projetos de decretos legislativos e ajuizadas ações desafiando a nova norma.
Na ótica da Constituição, em matéria de direitos fundamentais, não há espaço para retrocessos – nem mesmo por emenda constitucional, mas somente para avanços e aperfeiçoamento das instituições e canais sociais já implementados.
O decreto de Bolsonaro contraria o projeto constitucional de fiscalização e participação popular na formulação de políticas públicas. Espaços deliberativos não podem ser mensurados ou reduzidos a gastos governamentais, muito menos desaparecer por ato unilateral do Executivo, que sequer sabe informar quantos conselhos seriam extintos ou o real impacto da medida para os cofres públicos.
Este é mais um passo de ataque à democracia brasileira, por meio do cerceamento da participação social, fantasiado de desburocratização em prol da eficiência, sem que seja embasado em qualquer dado concreto nesse sentido. Os conselhos são formas de assegurar a participação direta dos cidadãos em deliberações a respeito de políticas públicas que afetarão diretamente suas vidas.
Dentre as formas multifacetadas de autoritarismo, há as que fortalecem os poderes de seus líderes e suplantam garantias por instrumentos do Direito.¹ Nesse ponto, Gábor Attila Tóth alerta para a supressão de entidades civis ou endurecimento dos requisitos para seu funcionamento como instrumento hábil a promover pautas antidemocráticas. ²
Não custa lembrar que a possibilidade do dissenso é o que, por excelência, constitui a política democrática. Democracia é deliberação, diálogo e participação da sociedade civil nas instituições políticas. Quando uma legislação busca extinguir canais de participação direta, é a democracia que se ameaça, possibilitando que decisões sejam tomadas por governos cada vez mais autoritários.
Por Almir Megali Neto,[3] Mariana Tormin Tanos Lopes[4] e Raquel Possolo[5]
Leia mais em:
MPF Manifesta preocupação com decreto: http://www.mpf.mp.br/pgr/noticias-pgr/em-nota-publica-mpf-manifesta-preocupacao-com-decreto-que-extingue-conselhos-de-participacao-social
Esvaziar a Participação é enfraquecer a democracia: https://www.conectas.org/noticias/nota-publica-esvaziar-a-participacao-e-enfraquecer-a-democracia
Bolsonaro põe fim a toda participação social, diz especialista: http://www.justificando.com/2019/04/16/bolsonaro-propoe-fim-de-toda-estrutura-de-participacao-social-na-gestao-estatal-diz-especialista/
1 LANDAU, David. Abusive Constitutionalism. 47 U.C.D.L.Rev., 2013.
2 TÓTH, Gabor. The Authoritarian’s New Clothes: Tendencies Away from Constitutional Democracy. The Foundation for Law, Justice and Society.
3 Pesquisador do CJT/UFMG. Mestrando em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da UFMG. Bolsista pela CAPES.
4 Pesquisadora do CJT/UFMG. Mestranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da UFMG.
5 Pesquisadora do CJT/UFMG. Mestranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da UFMG. Bolsista pela CAPES.