dezembro 16, 2020
Na última década, o declínio na qualidade e quantidade de democracias preocupa acadêmicos, governantes, e entidades ligadas à proteção de direitos humanos. Transparece no alcance de discursos de extrema-direita, na eleição de figuras como Trump, nos Estados Unidos, Viktor Orban, na Hungria, e de Bolsonaro, no Brasil, além de outros.
Erosões democráticas – entendidas aqui como a degradação incremental das estruturas e substâncias da democracia constitucional liberal – em diversos contextos foram intensificadas durante o preocupante contexto da pandemia provocada pelo Coronavírus. 2020, contudo, trouxe também reações institucionais e populares a este cenário que podem indicar estagnação ou retrocesso da onda autoritária.
A pandemia de COVID-19 alertou especialistas para o recrudescimento da onda de erosão democrática em curso. Entre as ameaças estavam o uso de poderes emergenciais para concentração de funções, violações a direitos humanos e aumento das desigualdades sociais.
Na Hungria, o parlamento concedeu poderes ilimitados e por tempo indeterminado à Viktor Orban, do Fidesz. Mesmo com a revogação da medida, a erosão permanece no país que, assim como a Polônia – onde Andrzej Duda, do PiS foi reeleito -, já ocupa o status de regime híbrido.
A crise constitucional no Peru ganhou novo episódio. Meses após dissolver o Congresso, o Presidente Martín Vizcarra sofreu impeachment “por incapacidade moral” em razão de denúncias de corrupção. Seu afastamento foi seguido por protestos populares, duramente repreendidos pelas forças policiais. Em menos de uma semana, a presidência do país foi substituída três vezes, em meio ao caos político-econômico, com poucas perspectivas de estabilidade.
O contexto de violação generalizada a direitos humanos na Venezuela resulta no deslocamento em massa de milhares dos seus cidadãos. O agravamento da crise nos últimos anos envolve a autoproclamação de Juan Guaidó como Presidente, divisão dentro das forças armadas e a recondução de Nicolás Maduro ao Executivo, em eleição marcada por denúncias de fraude.
No Brasil, o ano foi marcado por protestos em prol do fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, tentativa de auto-golpe, militarização e aparelhamento do estado. Corrupção, disseminação de fake news e ataques por milícias digitais, revisionismo histórico, retrocessos ambientais, em direitos humanos, ataques à liberdade acadêmica e de expressão intensificaram-se. Ao custo de milhares de vidas, o governo federal adotou postura anticientífica sobre a pandemia, abordagem que, espera-se, leve à sua responsabilização por genocídio e crimes contra a humanidade.
Além disso, processos de erosão na Índia, Turquia, Filipinas prosseguem sem grandes entraves.
Protestos populares iniciados em outubro de 2019 resultaram na aprovação em plebiscito de uma Constituinte para uma nova constituição chilena. Motivados pelo aumento de tarifa do metrô em Santiago, um grupo de secundaristas manifestou-se pulando catracas. Essa manifestação se alastrou pelo país inteiro, e ficou conhecida como estallido social, com reivindicações mais amplas, contra um sistema de desigualdades e uma demanda por participação estatal na prestação de serviços públicos.
A Revolução do Chile. Foto: Elias Arias
Esse sistema regeu-se pela Constituição de 1980, elaborada e promulgada durante a ditadura de Pinochet, em que a atuação do Estado se dava de forma subsidiária à iniciativa privada em relação à saúde e à educação, por exemplo.
Conforme resultado do Plebiscito, quase 80% dos chilenos desejam ver enterrada de vez a Constituição da ditadura. Oportunidade para que reformas institucionais sejam levadas a cabo, como uma reformulação na segurança pública, mais especificamente na polícia chilena, os carabineiros. Conforme previsto, Constituintes serão eleitos em abril de 2021, sem necessidade de filiação partidária, com a previsão de paridade de gênero, 50% homens e 50% mulheres, bem como cota de assentos reservados a indígenas.
Nos Estados Unidos, o assassinato de George Floyd alavancou protestos contra a violência e racismo imbricados no aparato policial do país. Meses depois, o projeto antidemocrático e anti-científico de Trump foi rejeitado, em um comparecimento histórico nas urnas. Apesar dos ataques à credibilidade do pleito e resistência de Trump em aceitar o resultado, tudo indica que Biden e Kamala Harris assumirão a Casa Branca em 2021 sem grandes entraves.
Na Bolívia, a população compareceu às urnas para demonstrar seu apoio à democracia e em repúdio ao golpe de Estado que depôs e exilou Evo Morales há um ano. Recentemente, o país reconheceu a união entre pessoas do mesmo sexo e passou a tributar grandes fortunas. Na Colômbia, protestos exigem o fim da violência policial e defendem a implementação de garantias sociais.
Além da criação do Imposto sobre Grandes Fortunas para enfrentar as consequências da pandemia Covid-19, Aporte Solidário e Extraordinário, conforme o denominaram as autoridades, aprovou-se na Argentina também o autocultivo de maconha para fins medicinais. A descriminalização do aborto parece estar próxima de se realizar. A Câmara Federal aprovou o projeto de lei, enviado pelo Presidente Alberto Fernandéz e segue para votação no Senado. A mobilização social em torno da discussão foi grande, com manifestações populares por defensores da legalização e dos opositores.
Atualmente, há previsão legal de interrupção da gravidez até a 14ª semana, em caso de risco à Saúde da mãe, e em casos de estupro. Essa é a 9ª vez que um projeto de lei sobre a descriminalização do aborto tramita no Congresso argentino, com a diferença de que, dessa vez, com apoio do Executivo. Em 2018, um projeto de lei sobre a legalização do aborto foi rejeitado pelo Senado.
No Brasil, judiciário, legislativo, sociedade civil, mídia e governadores foram barreiras aos retrocessos em direitos humanos e minimizaram as proporções da crise sanitária. Incapaz de concretizar seu próprio partido político, o Aliança pelo Brasil, Bolsonaro não despontou como cabo eleitoral de relevo nas eleições municipais, em que figuras antidemocráticas como Crivela foram repudiadas pela população.
A despeito da resistência húngara e polonesa, o recém-criado fundo de recuperação pós-pandemia e ao orçamento da União Europeia, condiciona o repasse de recursos ao respeito ao Estado de Direito e direitos humanos pelos países membros.
Para além das respostas institucionais, Cláudio Pereira de Souza Neto ressalta o papel decisivo da sociedade na resistência à erosão (2020, p. 18). A este respeito, o último relatório do Instituto Varieties of Democracy – V-DEM celebra o aumento de protestos populares em defesa da democracia em escala global.
Os exemplos húngaro, polonês, brasileiro, demonstram que o problema é complexo e ainda há um longo caminho a percorrer no combate à erosão democrática. Ainda não é possível mensurar os impactos da crise sanitária de COVID-19 nos direitos humanos. Além do aprofundamento das desigualdades, severa crise econômica e financeira, que poderá reforçar discursos ligados à extrema-direita.
Todavia, as insurgências populares ao longo de 2020 foram verdadeiras barreiras ao aprofundamento do autoritarismo e trazem esperança de dias melhores.
Por Raquel Cristina Possolo [1] e Mariana Tormin Tanos Lopes [2].
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[1] Mestranda em Direito pela UFMG e pesquisadora do CJT/UFMG.
[2] Mestranda em Direito pela UFMG e pesquisadora do CJT/UFMG.