março 2, 2021
No dia 16 de fevereiro de 2021, Daniel Silveira foi preso após ter publicado no YouTube um vídeo de quase 20 minutos no qual o deputado faz ameaças e ofensas à honra dos ministros do STF (Supremo Tribunal Federal), além de propagar a adoção de medidas antidemocráticas contra o tribunal. Ele ainda defendeu o AI-5, ato institucional que marcou o início do período mais duro da ditadura militar brasileira.
Alexandre de Moraes, ministro do STF que ordenou a prisão em flagrante do deputado, afirmou que as manifestações de Silveira no vídeo instigam ações violentas contra a segurança dos ministros do STF, ferindo a Lei de Segurança Nacional. Moraes também ressaltou que Silveira é “reiterante na prática criminosa” e disse que as falas do deputado foram “clara afronta aos princípios democráticos, republicanos e da separação de Poderes”.
A defesa de Daniel Silveira contesta a legalidade da prisão do deputado e defende que a decisão do Supremo é um ataque à liberdade de expressão, afirmando que “Os fatos que embasaram a prisão decretada sequer configuram crime, uma vez que estão acobertados pela inviolabilidade de palavras, opiniões e votos que a Constituição garante aos deputados federais e senadores”. Ainda assim, no dia 19 de fevereiro de 2021, a Câmara dos Deputados manteve a prisão de Silveira por ampla maioria.
Diante de tal caso, nos cabe questionar quais os limites da liberdade de expressão e da proteção garantida pela imunidade parlamentar.
A liberdade de expressão é um direito fundamental da pessoa humana e é assegurada pelo artigo 5° da Constituição Federal de 1988. A garantia desse direito foi um grande passo após a ditadura militar, período em que a manifestação de ideias e opiniões era reprimida de forma intensa e violenta pelo Estado.
O debate sobre a separação entre liberdade de expressão e discurso de ódio é cíclico e foi trazido à tona com os recentes acontecimentos da prisão de Daniel Silveira e consequentes discussões sobre imunidade parlamentar. Há os que defendem que esse direito vem sendo usado como escudo para discursos que atentam contra a democracia e para o pronunciamento de palavras de ódio.
Uma das características dos direitos fundamentais é o fato de que eles dependem do momento de sua aplicação. Qual direito irá prevalecer é uma questão que deve ser definida em cada caso concreto. O STF decidiu que “Não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto.” A melhor forma de resgatar o que foi defendido pelo STF é que é preciso desenvolver um adequado processo interpretativo para que um direito fundamental triunfe na aplicação de um caso. Logo, o direito à liberdade de expressão, sendo um direito fundamental, enfrenta, de fato, limites, apesar de ser essencial à democracia.
Tomando o caso de Daniel Silveira como análise, surge um debate para discutir se as falas do deputado estão dentro de seu direito de liberdade de expressão e proteção da imunidade parlamentar, como afirma sua defesa, ou se o deputado está, na verdade, usando esse direito fundamental como desculpa para ferir a democracia e fazer ameaças aos ministros e à instituição do STF.
O Ministro Alexandre Moraes defendeu que, apesar da liberdade de expressão ser uma garantia constitucional, não são constitucionais as manifestações que tenham a finalidade de “controlar ou mesmo aniquilar a força do pensamento crítico, indispensável ao regime democrático; quanto aquelas que pretendam destruí-lo, juntamente com suas instituições republicanas; pregando a violência, o arbítrio, desrespeito à Separação de Poderes e aos direitos fundamentais”.
O ministro que decretou a prisão de Silveira não é o único que concorda que as manifestações do deputado no vídeo publicado ultrapassaram os limites da liberdade de expressão. Carlos Ari Sundfeld, professor de Direito Público da FGV-SP afirmou que os ataques e excessos do vídeo, especialmente no contexto político em que estamos vivendo, tendem a configurar um “terrorismo verbal com o objetivo deliberado, e a capacidade de afetar de modo sério as instituições”.
A Conselheira da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) Ana Carolina Moreira dos Santos também se manifestou e disse que, pelo interesse público e bem comum, a manutenção da ordem constitucional deve prevalecer quando esta se encontra em jogo com a garantia da liberdade de expressão.
O discurso de Silveira em seu vídeo de quase 20 minutos, portanto, ultrapassa o sentido constitucional do uso da liberdade de expressão e fere princípios constitucionais. Segundo Moraes, a Constituição Federal de 1988, de modo a preservar a democracia e o Estado de Direito, não permite a propagação de ideias que ameacem a ordem constitucional ou o Estado democrático e “nem tampouco a realização de manifestações nas redes sociais visando o rompimento do Estado de Direito, com a extinção das cláusulas pétreas constitucionais – Separação de Poderes (CF, artigo 60, § 4º), com a consequente, instalação do arbítrio”.
Assim, o deputado, que já foi acusado de outros atos antidemocráticos, teria praticado atos que ferem a Lei nº 7.170/83 (Lei de Segurança Nacional) que tipifica os crimes que “lesam ou expõem a perigo de lesão” a soberania nacional, o regime democrático, o Estado de Direito ou os chefes dos poderes da União. Apesar de se tratar de lei aprovada no período ditatorial, ela é a norma que, filtrada constitucional, visa a regular, no momento, o art. 5º, inc. XLIV, da Constituição de 1988.
Tendo em vista as justificativas de prisão de Daniel Silveira e as declarações de profissionais da área sobre o caso do deputado, percebemos que as manifestações de Silveira extrapolaram os limites da liberdade de expressão por terem sido consideradas uma ameaça ao Estado de direito tendo em vista o conteúdo do vídeo publicado. Como no vídeo o deputado apresentou conclamação pela intervenção do Exército contra o STF, pelo retorno do AI-5 e em favor de um golpe à ordem democrática, foi decidido, assim, que a proteção de instituições democráticas e a ordem institucional devem prevalecer.
O artigo 53 da Constituição Federal prevê que os deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos, cabendo ao STF o seu julgamento e ressalvando que os parlamentares não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável.
O referido dispositivo jurídico é uma prerrogativa da função parlamentar e tem por finalidade assegurar a liberdade do representante no Congresso Nacional, e isso como garantia da independência do próprio parlamento e da sua existência. Essa prerrogativa ganha o nome de imunidade parlamentar, por tornar o congressista excluído da incidência de certas normas gerais.
No entanto, é importante destacar que a imunidade não é prevista para gerar um privilégio ao indivíduo que se encontra no desempenho de mandato parlamentar, mas tem por objetivo assegurar o livre exercício desse mandato e prevenir ameaças ao funcionamento do Poder Legislativo.
Sessão para a votação de propostas legislativas. Dep. Daniel Silveira (PSL – RJ). Foto: Michel Jesus/Câmara dos Deputados
A inviolabilidade civil e penal dos deputados e senadores por suas opiniões, palavras e votos garante a neutralização da responsabilidade do parlamentar nessas esferas, mas como a imunidade tem alcance limitado, tendo em vista o seu objetivo, entende-se que o ato do parlamentar, para ser absorvido pela prerrogativa, deve ter sido praticado em conexão direta com o exercício do seu mandato.
O STF entende que não estão protegidas pela imunidade as palavras proferidas “fora do exercício formal do mandato”, que “pelo conteúdo e contexto em que perpetradas, sejam de todo alheias à condição de Deputado e Senador do agente”. O tribunal salienta ainda que a imunidade não se restringe ao espaço físico do Congresso Nacional, acompanhando o parlamentar “muro afora”, desde que a atuação do congressista se enquadre em comportamento que seja expressão do múnus parlamentar.
Se isso não ocorrer e não houver relação entre as palavras e o exercício da função parlamentar, o deputado ou senador será tratado como outro cidadão qualquer, sendo responsabilizado pelo que disse em todas as esferas jurídicas, não incidindo a imunidade prevista no artigo 53.
Dessa forma, ninguém pode se escudar na inviolabilidade parlamentar para, sem vinculação com a função e sob o argumento da liberdade de expressão, ofender, caluniar e difamar alguém ou difundir discursos de ódio, violência, discriminação e de ataque a democracia.
Nesse contexto, após a determinação da prisão de Daniel Silveira, a Câmara dos Deputados, por se sentir atacada e ameaçada pelo STF, se organizou para propor uma PEC (Proposta de Emenda Constitucional) que visa regulamentar o artigo 53 da Constituição Federal. Cuida-se de uma tentativa de ampliar a imunidade parlamentar e reduzir as chances de prisão de deputados e senadores.
Tendo em vista tal PEC, cabe o questionamento se ela representaria uma tentativa de expandir os “privilégios” que a imunidade parlamentar concede aos congressistas, excluindo a possibilidade de responsabilização por suas palavras em qualquer contexto, o que desafiaria os limites da liberdade de expressão e quais seriam os impactos que isso poderia ter em nossa democracia.
Por Ester Wagner Siqueira [1] e Rafaela Maria Cantídio Toledo [2].
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[1] Graduanda em Direito pela UFMG e extensionista do Centro de Estudos sobre Justiça de Transição (CJT/UFMG).
[2] Graduada em Direito pela PUC Minas e extensionista do Centro de Estudos sobre Justiça de Transição (CJT/UFMG)