maio 22, 2019
A edição do Decreto 9.785/2019, que regulamentou ampliadamente o porte de armas em diferentes situações, segue e evidencia uma prática que parece ser do interesse do presidente Bolsonaro: o governo mediante decretos. Logo após assumir o cargo, o presidente já havia avançado sobre a matéria ao editar o Decreto 9.685/2019, regulador de um suposto “direito” à posse de armas. Em menos de três meses, este último decreto foi revogado por aquele primeiro.
Em uma primeira e simples comparação, de fato, o Decreto 9.785/2019 é muito mais amplo que o Decreto 9.685/2019. O decreto de janeiro tratava de modo mais direto da posse de arma de fogo e, por isso, apenas alterava em parte o que dispunha o regulamento anterior do Estatuto do Desarmamento. O Decreto 9.785/2019 revogou os dois decretos anteriores e tratou de modo muito mais amplo sobre a aquisição, o cadastro, o registro, a posse, o porte e a comercialização de armas de fogo e de munição.
Afinal, por que a pressa em revogar um decreto em tão pouco tempo e sobre uma matéria tão delicada, a ponto de necessitar de mais mudanças para esclarecer, por exemplo, que indivíduos não terão direito a porte de fuzil?
Sob a perspectiva da segurança pública e dos efeitos que mais armas provocam na violência, há importantes estudos que correlacionam o aumento de homicídios e lesões a partir da facilidade do acesso à posse e ao porte de armas. Contudo, nossa perspectiva de análise é outra. Há inconstitucionalidades e efeitos perigosos para a democracia nessa empreitada por mais armas.
Primeiro, as inconstitucionalidades. Os decretos são atos normativos secundários, ou seja, eles existem para que um presidente, um governador ou um prefeito apenas regulamente leis. Um decreto não é um ato que pode regulamentar diretamente uma constituição. Eles apenas exprimem a necessidade de algum detalhamento que permita operacionalizar algo definido em lei, essas sim reguladoras de uma constituição.
Assim, se um decreto pura e simplesmente é contrário à lei, ele é, obviamente, ilegal. E por uma razão simples: cabe ao Poder Legislativo aprovar leis por meio de representantes para tanto eleitos. Não se trata de uma atribuição do chefe do Poder Executivo, no caso, o presidente da república.
Sempre que há um aumento na produção de decretos, uma luz vermelha deve se acender. Embora isso possa ocorrer em decorrência, por exemplo, do aumento no número de políticas públicas executadas, também pode ser o caso de uma tendência autoritária, de concentração de poderes pelo Executivo. Portanto, para compreender a diferença entre as duas situações, uma possibilidade é avaliar não a quantidade de decretos, mas a qualidade do que neles vem regulado.
No presente caso, o Decreto 9.785/2019 parece se situar dentro das hipóteses em que flagrantemente se violou a lei.
De fato, a Lei 10.826/2003, conhecida como Estatuto do Desarmamento, explicita que hipóteses de concessão de registro ou porte são dependentes de comprovação de “efetiva necessidade” pelo requerente. Assim, ao permitir, por exemplo, que um advogado, agente de trânsito ou motorista de empresa e transportador autônomo de carga possam requerer porte de arma de fogo à Polícia Federal sem comprovação de “efetiva necessidade” para o “exercício de atividade profissional de risco ou de ameaça à sua integridade física”, o decreto faz presumir cumprido um requisito por exclusiva vontade do presidente da república.
Consequentemente, o decreto abandona um requisito previsto em lei regularmente aprovada no Congresso Nacional para defini-lo em termos do que uma única pessoa, o chefe do Executivo federal, deseja.
Nesse mesmo sentido tem argumentado o Ministério Público Federal, por meio de sua Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, ao defender a inconstitucionalidade do Decreto 9.785/2019. Em Nota Técnica encaminhada ao Poder Legislativo federal, o órgão afirma que, da forma como apresentada, a modificação pretendida no regime de posse e uso de armas de fogo “deveria ter sido submetida ao Congresso Nacional por meio de um projeto de lei, pois não se trata de matéria meramente regulamentar, mas sim de alteração de uma política pública legislada”.
De forma similar, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e a Rede Sustentabilidade ajuizaram Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) perante o Supremo Tribunal Federal sob o argumento de que, ao editar o decreto, o presidente extrapolou sua prerrogativa constitucional de regulamentar leis. Dessa forma, por usurpar o poder de legislar do Congresso Nacional, haveria verdadeira violação das garantias básicas do Estado Democrático de Direito.
Os perigos que o decreto pode trazer para a democracia podem ser comparados ao excesso de poder por vezes conferido à figura de um presidente, ainda que democraticamente eleito.
O filme “Vice”, de Adam McKay, retrata o antigo desejo de Dick Cheney (chefe de gabinete de Gerald Ford, secretário de defesa de George H. W. Bush e vice-presidente de George W. Bush) de que prevalecesse nos Estados Unidos a teoria do poder executivo unitário. Segundo ela, o presidente incorporaria em boa parte a administração federal, evitando, assim, que o legislativo pudesse exercer maiores funções de fiscalização.
Essa teoria teve seu auge na defesa que o jurista John Yoo fez dos diversos poderes exercidos pelo presidente George W. Bush durante o período que se seguiu ao 11 de setembro de 2001. É nesse contexto que autores como Ellen Kennedy discutem como a expansão das competências do Executivo foi uma marca da crise na Alemanha na década de 1920, bem como do atual cenário estadunidense. A expansão do executivo incluiu, nos EUA, o poder de usar “técnicas avançadas de interrogatório”, um eufemismo para tortura, e o poder de expedir executive orders (equivalentes do nosso decreto), prática que tem crescido de lá para cá.
O Decreto 9.785/2019 é mais um sintoma de preocupação em relação às predileções autoritárias do governo Bolsonaro. Além de estimular a violência e conferir irrestritamente a inúmeras pessoas o poder de resolver litígios com armas, ele demonstra uma incapacidade de observar as exigências constitucionais e institucionais que funcionam para qualquer presidente.
O problema se torna cada vez mais evidente, principalmente quando o próprio presidente divulga a ideia de que ele seria um “enviado por Deus” ou quando estimula manifestações em seu apoio e em desfavor do Congresso Nacional ao dizer que o problema do Brasil é a “classe política”. Se isto é assim, a quem caberia fiscalizá-lo?
A resistência em atender aos limites das prerrogativas presidenciais, extrapolando-as para subjugar as competências legislativas do Congresso Nacional eleito, indica um perigo para a separação de poderes e para o papel de fiscalização mútua entre eles, garantias estas que são básicas para o Estado Democrático de Direito. Para alguém que evita ao máximo o debate legislativo, o decreto editado em 7 de maio é mais um fruto da tentativa desesperada de demonstrar eficiência apresentando soluções apressadas e irrefletidas que fornecem riscos para a democracia brasileira.
Por Emilio Peluso Neder Meyer¹ e Ana Carolina Rezende Oliveira²
Leia mais em:
1 Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UFMG. Coordenador do Centro de Estudos sobre Justiça de Transição da UFMG (CJT/UFMG).
2 Doutoranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da UFMG. Pesquisadora do Centro de Estudos sobre Justiça de Transição da UFMG (CJT/UFMG).