julho 21, 2021
A pandemia de Covid-19 é constantemente descrita pelo governo como uma guerra, tanto literal quanto metaforicamente. Enquanto o próprio Presidente Bolsonaro, um capitão reformado do Exército, frequentemente argumenta que o vírus é uma arma biológica lançada pela China, altos líderes do Executivo e do Legislativo empregam o termo como metáfora.
Vamos supor, então, que a pandemia seja, de fato, uma guerra. Até o momento, mais de 540.000 brasileiros foram mortos na guerra contra a Covid-19. Mais brasileiros morreram pela doença do que a soma de todas as guerras que o Brasil participou. Se nos restringirmos às mortes no Exército brasileiro, mais homens foram mortos pelo vírus do que durante a participação do país na Segunda Guerra Mundial.
Assumindo que a pandemia é uma guerra, o Brasil está perdendo. E isso ocorre, principalmente, por responsabilidade do militar que lidera o país e seus generais. Em abril de 2020, a estratégia escolhida pelo governo Bolsonaro para lidar com a pandemia, a “estratégia do caos”, tinha todos os ingredientes para instalar a calamidade no Brasil. E isso é, de fato, o que está ocorrendo.
Mas diante de tamanha destruição e tragédia, e considerando que o Governo Federal é formado em grande parte por militares, qual é o papel das Forças Armadas nesse contexto? E o que os brasileiros podem esperar do futuro?
As Forças Armadas foram centrais na eleição de Jair Bolsonaro. Ele certamente foi o candidato escolhido pela instituição. Desde 2014, anos antes da candidatura, Bolsonaro foi autorizado a fazer campanha eleitoral na Academia Militar das Agulhas Negras – algo que seria impossível sem que o Alto Comando aprovasse. Seu Vice-Presidente é um General de Exército reformado (que vem sendo excluído das reuniões ministeriais). Antes da demissão do Ministro da Saúde, General Pazuello, havia 11 militares, entre ativa e reserva, comandando ministérios (de um total de 26 pastas). Além disso, é importante ressaltar que Bolsonaro já expressou diretamente sua gratidão ao então Comandante do Exército, por ter sido “um dos responsáveis” por sua eleição.
Da mesma forma que é possível afirmar que os militares foram centrais para a eleição de Bolsonaro, também parece ser possível afirmar que eles são co-responsáveis pela atual crise no Brasil. Quase 7.000 militares da ativa e da reserva ocupam postos civis no Executivo Federal, incluindo o Ministério da Saúde. Como exposto, muitos ministros (e ex-ministros) têm histórico militar. Dentre os militares que não mais ocupam ministérios, se encontra o Ministro da Saúde que permaneceu no cargo pela maior parte da pandemia, Eduardo Pazuello, que continua sendo um general da ativa.
A gestão do General Pazuello no Ministério foi catastrófica. Durante sua gestão, o Brasil recebeu mais de 100 emails com ofertas de vacinas da Pfizer. A maioria desses emails não foi respondida. Também foi em sua gestão que o Amazonas enfrentou sua pior crise, com falta de oxigênio e pessoas morrendo sufocadas. Há evidências de que o Ministério da Saúde se omitiu quando pôde intervir para evitar o pior. Assim, no ápice da pandemia, Pazuello deixou o Ministério da Saúde, investigado pela Polícia Federal.
Durante a gestão do ministro-militar, há também indícios de uma sequência de erros e omissões por parte das Forças Armadas. Os laboratórios do Exército, por exemplo, produziram um excedente de cloroquina para tratamento da Covid, mesmo após a comprovação da ineficácia do medicamento. A instituição também se omitiu ao negar leitos de seus hospitais para o tratamento de civis. Por fim, há indícios de que o orçamento do combate à Covid tenha sido desviado para a manutenção de aeronaves militares e “despesas secretas” do Centro de Inteligência do Exército.
Após deixar o Ministério, General Pazuello participou de um ato político com o presidente, violando diretamente o Código Penal Militar. Depois de pressões por parte de Bolsonaro sobre o Alto Comando do Exército, Pazuello não foi punido. No momento, além de estar sendo investigado pela Polícia Federal, o ex-ministro é um dos alvos da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid.
Além do ex-ministro, a CPI da Covid está investigando também o atual Ministro da Saúde e outros 11 indivíduos. Além de Pazuello, outros dois membros das forças armadas são alvos das investigações: um coronel do exército (o número dois de Pazuello no Ministério) e um tenente-médico da Marinha que aparentemente preparou o decreto que alteraria a bula da cloroquina.
Há algumas semanas, após o Alto Comando ter decidido não punir Pazuello, o Ministro Presidente do Superior Tribunal Militar, General Mattos, declarou em uma entrevista para a Veja que a CPI desrespeitou Pazuello durante seu depoimento. Esse não parece ter sido o caso, uma vez que Pazuello foi tratado como uma testemunha e teve o seu direito de permanecer calado garantido. O juiz-general também afirmou que o Alto Comando do Exército tinha razões para não punir Pazuello, o que também não parece ser o caso, visto que Pazuello violou o Código Penal Militar. Apesar das declarações do General Mattos, parece improvável que conheçamos as razões do Alto Comando para não punir Pazuello, tendo em vista que a instituição decretou 100 anos de sigilo sobre seus procedimentos internos.
Após colher depoimentos de uma testemunha em uma sessão da CPI do Covid há algumas semanas, o presidente da Comissão, Senador Omar Aziz, destacou a ação de “militares corruptos” durante a pandemia. No mesmo dia, o Ministro da Defesa e os três comandantes das Forças Armadas – Marinha, Exército e Aeronáutica – publicaram uma nota oficial, criticando abertamente a declaração do presidente da Comissão. Diversos senadores interpretaram a carta como uma forma de intimidação ao presidente e ao trabalho da Comissão. Como muitos têm apontado on-line, uma resposta tão imediata pode sugerir que os militares não apenas estão cientes de seu papel na crise atual, mas também buscam ativamente desassociar-se dele.
Na entrevista concedida para a Veja, General Mattos havia elogiado o trabalho do Exército durante a pandemia. A nota do Ministro da Defesa e dos comandantes das Forças Armadas também elogiou o papel dos militares. De qualquer forma, assumindo que a luta contra a Covid seja uma guerra ou não, não parece haver nada a ser elogiado.
Há algumas semanas, um funcionário do Ministério da Saúde relatou transações suspeitas na compra de vacinas. Ao invés de apurar esses atos suspeitos, o Secretário Geral da Presidência, Onyx Lorenzoni, convocou uma coletiva de imprensa e ameaçou investigar o servidor federal que relatou a suspeita.
Investigar e remover funcionários públicos por motivos políticos e retaliar indivíduos por seguir a lei e denunciar ilegalidades não é incomum na administração atual. Recentemente, três delegados da Polícia Federal foram destituídos por investigarem o ex-ministro do Meio Ambiente. Um ministro que já havia renunciado, respondendo a duas investigações criminais no Supremo Tribunal Federal.
Junto com os relatos de corrupção e represálias do governo, a falta de uma ação federal coordenada contra a Covid é evidente. Não parece que o Brasil vá superar a pandemia em um futuro próximo. Ao contrário, cientistas projetam que o Brasil ultrapassará os Estados Unidos em mortes por Covid nos próximos meses.
Paralelamente, o Presidente Bolsonaro ameaça as eleições de 2022 e critica abertamente os Ministros do Supremo Tribunal Federal e membros do parlamento.
Apesar de todos esses atos e omissões do Presidente, é improvável que Bolsonaro sofra um impeachment nas atuais circunstâncias. Questionado sobre a possibilidade de impeachment, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, que atualmente detém mais de 125 pedidos de impeachment, afirmou que não há “circunstâncias políticas” para tal.
Algumas semanas atrás, um grupo amplo e heterogêneo de associações e parlamentares entrou com um novo pedido de impeachment, que combinou parte dos fundamentos de todos os 120 pedidos anteriores. Esse pedido vem sendo chamado, pelos requerentes e pela mídia, de “superpedido de impeachment”. Conivente, Arthur Lira se manteve firme na decisão de não levar os requerimentos adiante.
Questionado sobre a CPI que investiga as ações do Governo Federal, Arthur Lira criticou a Comissão, também por meio da metáfora bélica: “…estamos no meio da guerra. Como você vai investigar crimes de guerra com a guerra em curso?”.
Hoje em dia, há um ditado que se encaixa muito bem à metáfora que tem sido utilizada ao longo do texto: “estar vivo nesse país é um ato de resistência”. Realmente, com mais de 540 mil mortos, parece haver fundamento – metáfora de guerra ou não. Ao ato de resistência, poderíamos acrescentar um ato revolucionário: sobreviver a este governo para fazer valer as eleições de 2022. Eleições que serão, provavelmente, as mais importantes da vida de muitos brasileiros e brasileiras e, esperançosamente, não serão as últimas.
Escrito por Felipe Guimarães Assis Tirado [1].
Traduzido por Bruno Braga [2]; Ester Wagner Siqueira [3]; Raíssa Michaela Pereira Costa e Silva [4].
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[1] Doutorando em Direito e Visiting Lecturer no King’s College London. Pesquisador associado ao CJT/UFMG. Coordenador do Observatório da Amazônia.
[2] Graduando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Pesquisador e extensionista do Centro de Estudos sobre Justiça de Transição (CJT/UFMG).
[3] Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Extensionista do Centro de Estudos sobre Justiça de Transição (CJT/UFMG).
[4] Graduanda em Ciências do Estado pela Universidade Federal de Minas Gerais. Extensionista do Centro de Estudos sobre Justiça de Transição (CJT/UFMG).