Por que Bolsonaro investiga antifascistas? Vigilância política e autoritarismo no Brasil

agosto 12, 2020

Brasil

No fim de julho de 2020, foi revelado pelo UOL que a Secretaria de Operações Integradas (Seopi) do Ministério da Justiça (MJ) produziu, sigilosamente, um dossiê sobre 579 pessoas. Entre elas, servidores da segurança pública e intelectuais, investigados por suposta ligação com grupos antifascistas ou posicionamentos críticos ao governo Bolsonaro.

O dossiê contém diversas informações sobre os investigados, com fotografias e, em alguns casos, endereços de suas redes sociais. O relatório foi repassado pelo MJ à Casa Civil da Presidência, à Agência Brasileira de Inteligência (ABIN), à Polícia Federal (PF), ao Centro de Informações do Exército, além de outros órgãos das administrações federal e estaduais.

A investigação da Seopi teve início no começo de junho, após a divulgação do manifesto “Policiais antifascismo em defesa da democracia popular”, subscrito por 503 servidores da segurança pública. Os signatários do documento se posicionavam contra “ameaças de desestabilização institucional democrática em nosso país” e defendiam um “compromisso com a verdadeira democracia”.

Mas, por que o governo investigaria pessoas que defendem a estabilidade democrática? E, ainda, por que a identificação de servidores com o antifascismo seria motivo de preocupação?

Contextualizando o dossiê

O manifesto que deu origem à investigação da Seopi foi publicado em meio ao acirramento das tensões institucionais.

Após acusações de interferência de Jair Bolsonaro na Polícia Federal, o Ministro do Supremo Tribunal Federal Celso de Mello enviou à Procuradoria-Geral da República (PGR) solicitações de partidos e parlamentares para apreensão do celular do presidente e do  vereador Carlos Bolsonaro. Tratava-se de um requerimento de praxe, que deveria ser atendido ou rejeitado pelo Procurador-Geral da República após análise.

Entretanto, o despacho à PGR foi recebido com ultraje pelo Palácio do Planalto. Uma nota do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) mencionou “consequências imprevisíveis para a estabilidade institucional”, caso as medidas fossem efetivadas. Recentemente, a revista Piauí revelou que a nota teve origem em reunião na qual Bolsonaro havia decidido intervir e ocupar o STF com tropas. Ao ser dissuadido por seus Ministros, decidiram pela publicação do documento.

A nota, assinada pelo Ministro do GSI, o General reformado Augusto Heleno, foi recebida com preocupação por entidades da sociedade civil. O manifesto dos policiais em “defesa da democracia popular” (que daria origem à investigação da Seopi) estava entre as várias respostas que enxergavam um tom de ameaça no documento.

Além disso, há indícios da ocorrência de sistemática perseguição ideológica de servidores públicos:

(i) foi registrado aumento das denúncias de assédio moral em vários ministérios;

(ii) a CGU publicou nota afirmando que o servidor poderia ser punido por críticas em redes sociais; e

(iii) mais recentemente, houve o cancelamento da ida de agentes da Abin para embaixadas, aparentemente por razões políticas.

O dossiê está inserido nesse contexto: em meio a tensões institucionais e crescentes evidências de perseguição política de servidores públicos.

Quem investiga? Por que investiga? E quem é investigado?

Antes do governo Bolsonaro, a Seopi funcionava como uma coordenadoria do Ministério da Justiça. O órgão tinha como objetivo principal articular investigações criminais entre as polícias federal e civis, com foco em crimes de exploração sexual e pornografia infantil.

No primeiro dia de mandato, Bolsonaro assinou uma série de decretos reestruturando a administração federal. Em meio a eles, passou despercebida a atribuição à Seopi da função de “estimular e induzir a investigação de infrações penais, de maneira integrada e uniforme com as polícias federal e civis.” Uma competência vaga que possibilitaria que o órgão adquirisse uma ampla competência investigativa – culminando no dossiê de junho.

As atividades da Seopi geram preocupação. Como ressaltou Rubens Valente, é um aparato de inteligência híbrido entre União e Estados, que “transita em uma área cinzenta”, com pouca transparência sobre suas competências e fora do controle da sociedade civil. Não há, também, clareza sobre o tipo de informações a que tem acesso e a legitimidade dessas investigações, já que atua sem a existência formal de inquéritos policiais.

Entretanto, outro fator contribuiu para a recente investigação de agentes estatais pela secretaria. Em dezembro de 2019, o então ministro Sérgio Moro tornou a Seopi parte do Sistema Brasileiro de Inteligência (SISBIN). A decisão de Moro possibilitou o compartilhamento de informações entre a Seopi e mais de 40 órgãos de inteligência, como ocorreu no caso do dossiê.

Finalmente, com a renúncia de Sérgio Moro do MJ, em abril, André Mendonça assumiu o Ministério. Ao assumir, Mendonça teria requerido que a Seopi investigasse “movimentos que poderiam colocar em risco a estabilidade política do governo Bolsonaro”, orientando expressamente que fossem produzidos “relatórios detalhados dos indivíduos monitorados”.

Assim foi desenvolvida a investigação que gerou o dossiê. Em meio a tensões institucionais e indícios de uso do aparato de inteligência para perseguições políticas, o documento foi produzido para identificar pessoas que se reconhecem antifascistas ou são críticas ao governo. Seu resultado possibilitaria o monitoramento por meio do compartilhamento das informações com órgãos de inteligência e de segurança pública.

Em resposta à repercussão causada pela revelação do dossiê, o Ministério da Justiça demitiu o responsável pela Diretoria de Inteligência da Seopi – o Coronel reformado Gilson Libório.

Após se negar a entregar o relatório ao STF, o Ministro André Mendonça admitiu sua existência em audiência na Comissão Mista de Inteligência do Congresso e afirmou que o entregaria à Comissão. Todavia, ainda não esclareceu qual a ameaça que essas 579 pessoas representam para justificar a investigação.

Um paralelo com o período autoritário?

Entrevistado após a divulgação do dossiê, Luiz Eduardo Soares, antropólogo, ex-Secretário Nacional de Segurança Pública e um dos três acadêmicos investigados,  afirmou que: “A recriação do velho SNI deixou de ser o sonho de Bolsonaro para se tornar o pesadelo da sociedade brasileira”

Qual seria o paralelo entre a atuação da Seopi e o Serviço Nacional de Informações (SNI)?

O SNI foi o principal órgão de inteligência e contrainteligência da ditadura militar, “peça central no aparato que articulava a espionagem e as forças policiais de repressão”. Com o processo de redemocratização, o SNI foi extinto em 1990. Posteriormente, no governo FHC, suas funções de órgão estatal de inteligência foram atribuídas à Abin.

Além de suas funções estatais, o SNI produzia investigações sobre a posição ideológica, atividade subversiva e eficiência funcional de agentes públicos. Com uma estrutura infiltrada em órgãos de Estado, universidades e empresas privadas, os agentes do SNI monitoravam, investigavam e perseguiam indivíduos que exprimissem valores contrários aos do regime.

Vale notar que, na reunião ministerial de 22 de abril, Bolsonaro manifestou sua insatisfação com o recebimento de informações pelos órgãos oficiais e insinuou que teria um sistema de inteligência paralelo.

Nesse contexto, o objeto do dossiê e o método de atuação da Seopi permitem um paralelo claro entre as ações desenvolvidas pelo órgão do MJ e pelo SNI durante a ditadura militar. Ambos produziram investigações obscuras e pervasivas sobre agentes públicos críticos ao governo, abrindo caminho para retaliações aos investigados.

De tal forma, seja a produção desse dossiê uma ação sistemática do Ministério da Justiça sob o comando de Mendonça ou isolada (como parece alegar o Ministro), trata-se não apenas de violação aos direitos desses indivíduos, mas de evidente ameaça ao projeto constitucional inaugurado em 1988. A perseguição em razão de convicções políticas não é compatível com a função de um sistema de inteligência na democracia, sendo típica de governos autoritários.

Diante dessa conclusão, vale nova referência a Luiz Eduardo Soares, dessa vez como forma de advertência: “A infiltração do fascismo se dá por toda parte, corroendo os pilares da democracia.”

Por Ana Carolina Rezende Oliveira [1], Felipe Guimarães [2] e Henrique Oliveira [3].

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[1] Doutoranda em Direito na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mestre em Direito na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisadora associada ao CJT – UFMG.

[2] Doutorando em Direito no King’s College London (KCL). Mestre em Direito pelo KCL e pela UFMG. Pesquisador associado ao Brazil Institute – KCL e ao CJT – UFMG.

[3] Graduando em Direito na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Extensionista voluntário do CJT – UFMG.