julho 15, 2020
Diante das medidas de isolamento e distanciamento social necessárias à prevenção à disseminação do novo coronavírus, diversos setores da economia sofreram fortes perdas. A diminuição do ritmo de atividades industriais e comerciais ampliaram a possibilidade de demissões em massa e, consequentemente, a intensificação de uma crise financeira e econômica que o Brasil já tinha dificuldades de enfrentar.
Nesse contexto, condições de trabalho consideradas insuficientes se tornaram ainda mais precárias. Um exemplo é o setor de entregas por meio de aplicativos, que passou a ser acessado de forma vertiginosa nos últimos meses, sem representar aumentos na remuneração ou jornadas menores para os entregadores. Confrontando essa situação, no dia 1º deste mês os entregadores realizaram paralisação inédita, reivindicando, entre outros, o aumento no valor mínimo de entrega e do preço por quilometragem.
Contudo, será que essas manifestações por melhores condições de trabalho fazem parte apenas do momento pandêmico? Ou explicitam um movimento de precarização do trabalho em curso há alguns anos no Brasil?
Ao longo deste ensaio, faremos uma recapitulação do desmonte de garantias trabalhistas no Brasil, explicitamente adotada pelo governo Bolsonaro, com a extinção do Ministério do Trabalho, transformado em uma Secretaria do Ministério da Economia. Posteriormente, apresentaremos a suposta dicotomia “Economia versus Saúde”, que tem pautado a valorização da empresa em detrimento do empregado na pandemia. Por fim, analisaremos como essa política conforma uma verdadeira política da morte e seus impactos para o Estado Democrático brasileiro.
Maurício Godinho Delgado, Ministro do Tribunal Superior do Trabalho, aponta os anos iniciais do regime militar enquanto marco do início da desregulamentação do mercado de trabalho pátrio, privilegiando a rotatividade da mão de obra e a flexibilização contratual. Enquanto marcas do período, o autor aponta a rejeição às políticas de inclusão social e a repressão ferrenha de sindicatos.
Paralelamente, na mesma época, o ideário neoliberal foi mundialmente adotado, marcado inicialmente pela ditadura militar chilena e pela influência dos líderes Margareth Thatcher (Grã-Bretanha) e Ronald Reagan (Estados Unidos). O intento declarado do novo modelo econômico foi, e ainda é, a expansão de mercados e o afastamento do Estado da ordem econômica.
A redemocratização brasileira, contudo, não fez cessar a influência do modelo no país. A Constituição de 1988, marcadamente social-democrata, apresentou contraponto marcante às ideias em voga, mas não impediu, em tempos recentes, a precarização de trabalhadoras e trabalhadores mediante processo de desconstitucionalização do Direito do Trabalho, ou seja, a discussão de princípios trabalhistas desconsiderando a lei hierarquicamente superior.
A retirada da presidenta Dilma Rousseff é considerada ponto de salto neoliberal no país com a inclusão em pauta de amplas reformas na seara trabalhista, sendo a mais notável a Lei nº 13.467/2017. Dentre os motes, difundidos exaustivamente, estão a valorização do indivíduo em detrimento da coletividade e o “excesso” de direitos trabalhistas como responsável pela crise econômica.
Incentivaram-se, assim, formas precarizadas de trabalho como a terceirização, a subcontratação, o part-time e o emprego temporário. O Estado estimulou, ainda, com apoio midiático, o suposto empreendedorismo, chamando trabalhadores à informalidade sob promessas de serem donos de seu próprio horário e lucros. É o que acontece com aplicativos de transporte de passageiros ou entrega de bens, em que há transmissão completa do risco da empresa ao trabalhador e difusão de falsa ideia meritocrática.
É com a eleição de Jair Bolsonaro, entretanto, que a nova e acentuada fase liberal se consolida internamente. A atuação presidencial, marcada pela desenfreada edição de Medidas Provisórias (MPs) na seara trabalhista, foi recorrentemente justificada por suposta preocupação com o desemprego e a informalidade. A MP 905/2019, por exemplo, oferece o contrato de trabalho Verde e Amarelo enquanto opção de vínculo formal com redução sensível de direitos trabalhistas, aplicando a máxima liberal de que tal ato estimula a contratação de novos empregados.
A precarização do trabalho, justificada pela constante crise econômica, resultou, conforme esperado, em aumento do desemprego, da informalidade e da desigualdade social no país. Em cenário de pandemia, observa-se a continuidade do brutal modelo econômico, escancarando suas nefastas intenções.
Enquanto diversos líderes mundiais se preocupavam em adotar medidas sanitárias rígidas contra o avanço do coronavírus, mesmo que elas representassem uma estagnação em certos serviços e atividades, o governo Bolsonaro relutou em implementar uma estratégia efetiva de combate ao vírus, seja minimizando a situação (“gripezinha” e ironia quanto ao número de mortos), seja justificando a inação na suposta dicotomia entre Economia e Saúde, o que culminou na demissão de Ministros de Saúde que estivessem a favor do isolamento social.
Tal relutância se estendeu para a aprovação do auxílio emergencial, medida amplamente adotada em todo o mundo. É interessante notar que, apesar do esforço para diminuir o valor do auxílio em relação ao valor debatido no Congresso Nacional, o governo Bolsonaro não hesitou em continuar servindo ao mercado com a liberação de valores expressivos ao sistema bancário.
Outra medida em resposta aos anseios empresariais foi a edição, no final de março, da MP 927 com previsão de teletrabalho generalizado, antecipação de férias e, oportunisticamente, suspensão de exigências de segurança e saúde no trabalho.
Já em 1º de abril foi editada a MP 936, posteriormente convertida na Lei nº 14.020, de 6 de julho de 2020, que institui o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e Renda. Tal manutenção de postos de trabalho, na visão governamental, deveria ser atingida com a autorização da redução de salários em até setenta por cento e a suspensão de contratos de trabalho por até dois meses, tudo em acordos diretos entre empregado e patrão.
A pandemia, inclusive, serviu de motivo para que o Supremo Tribunal Federal afirmasse ser inaplicável a letra da Constituição, durante o momento atípico, quanto à obrigatória participação de sindicatos em discussões sobre redução salarial, dando aval jurídico à MP 936 e criando perigoso precedente para a aplicação seletiva de princípios constitucionais.
Em sentido semelhante, tem-se a inserção da mineração no rol de atividades essenciais pela Portaria nº 135/2020 do Ministério de Minas e Energia e pelo Decreto nº 10.329, mesmo diante dos protestos de funcionários do setor e da divulgação, por parte da imprensa, de que os trabalhadores seguiram as atividades sem proteção adequada e sujeitando-se a aglomerações, como foi o caso de mineiros da Vale nos estados de Minas Gerais e Pará.
Explícita, portanto, a predileção pelo mercado na tomada de decisão governamental, respondendo aos anseios elitistas em relação à “morte de CNPJs”, em que pese a ineficiência do projeto governamental para micro e pequenas empresas.
É evidente, dos exemplos demonstrados, que o momento crítico, marcado pelo desemprego e pela crise sanitária, não impede o avanço do neoliberalismo no país, tendo sido anunciado o retorno das atividades de grupo formado com a pretensão de aprofundar a reforma trabalhista discutindo temas como o enfraquecimento das entidades sindicais e a redução da correção monetária de dívidas trabalhistas. Os problemas reais da população, trabalhadora ou não, são deixados em segundo plano.
É emblemático que a primeira vítima fatal do novo coronavírus no Rio de Janeiro tenha sido uma empregada doméstica, cuja patroa tinha retornado de uma viagem para a Itália, país com maior número de mortos pela doença à época. Os estados do Pará, do Maranhão e do Rio Grande do Sul foram, inclusive, criticados pela Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas pela postura de incluir o serviço doméstico enquanto essencial.
A peculiaridade do início da pandemia, em que os casos eram majoritariamente detectados em classes mais abastadas, foi logo superada, pois o coronavírus não tardou em atingir em peso a população pobre, seja pela insuficiência do auxílio emergencial e necessidade de trabalho fora de casa, seja pela estrutura precária das moradias e da rede de mobilidade urbana, que mantém a exposição a aglomerações.
Indiferente às mortes ocasionadas pela crise sanitária e segura da impunidade, a classe empresária segue expondo trabalhadores ao vírus e clamando pela flexibilização da quarentena. O posicionamento do líder do Executivo não destoa da tônica, variando entre a apontada negação da gravidade da crise, a despeito de o Brasil ocupar o segundo lugar mundial em número de casos, e a defesa de medicamentos sem eficácia comprovada.
Nesse sentido, a fala desdenhosa do presidente de que “alguns vão morrer? Vão morrer. Lamento, é a vida”, bem como a ineficiência das medidas governamentais de combate ao coronavírus se enquadram na lógica de necropolítica, termo de Achille Mbembe que se refere ao conjunto de políticas de controle social, adotadas pelo Estado, por meio da morte: significa ditar quem pode viver e quem deve morrer, quais corpos são descartáveis e quais não são. E serão os corpos negros, pobres e de mulheres, retrato dos principais grupos afetados pelo desemprego e por condições precárias de trabalho, os alvos de extermínio.
É notório que a consolidação de ideias liberais na política brasileira, especialmente na seara trabalhista, coloca em xeque a democracia no país. O mercado construiu e aproveitou a fragilidade democrática para tomar diretamente o Estado mediante a incursão da subjetividade conservadora, atuando de forma manifestamente antiestatal. Percebe-se, assim, que as políticas neoliberalistas supracitadas confrontam e ameaçam um Estado Democrático de Direito fundado no respeito dos direitos humanos.
Não obstante, a adoção e comprometimento com as garantias sociais constitucionais e demais normativas internacionais, a exemplo dos Princípios Orientadores para Empresas e Direitos Humanos das Nações Unidas, que obrigam Estado e empresas a garantirem direitos humanos no exercício das atividades econômicas e empresariais, é uma via necessária para garantir os direitos de trabalhadores, sobretudo daqueles que se encontram em situações de vulnerabilidade.
O debate levantado nos mostra que o incentivo à criação de postos de trabalho a qualquer custo, com a falsa promessa de alavancar a economia e melhorar a qualidade de vida, sem a preocupação com garantias mínimas ao trabalhador, na realidade, acaba gerando mais desigualdades sociais e violações de direitos fundamentais. Resta saber se a pós-pandemia será marcada pela reconsideração do modelo neoliberal adotado no Brasil, ou se todo o sistema de direitos e garantias será arruinado de vez.
Por Victor Sousa Barros Marcial e Fraga [1], Sophia Pires Bastos [2] e Milena Coelho Angulo [3].
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[1] Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFMG. Advogado. Membro do Instituto Defesa da Classe Trabalhadora (iDeclatra).
[2] Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFMG. Pesquisadora do Centro de Estudos sobre Justiça de Transição (CJT/UFMG).
[3] Graduanda em Direito pela UFMG. Extensionista do Centro de Estudos sobre Justiça de Transição (CJT/UFMG)