junho 4, 2018
A Rede Latino-Americana de Justiça de Transição (RLAJT), por meio de seus membros, tornou público informe sobre a concretização dos mecanismos de reparação elencados no quadro da justiça de transição no continente. Contendo dados sobre Argentina, Chile, Brasil, México, Peru e Uruguai, os informes tratam, de modo sucinto, os ganhos e as falhas na adoção de uma abordagem aberta a noção de justiça transicional, nos respectivos países. A importância nodal de tais documentos se revela na necessidade de articulações internacionais na efetiva aplicação dos mecanismo de justiça e nas possibilidades de ganho advindos na trânsito da dados entre os integrantes da RLAJT e da sociedade como um todo, cumprindo-se assim o objetivo da Rede, enquanto possibilitadora do intercâmbio de informações entre as nações componentes da organização.
ARGENTINA
O relatório argentino comemora as vitórias alcançadas na concretização dos direitos à memória, verdade e justiça, em razão da continuidade de políticas públicas e decisões judiciais voltadas a esse fim ao longo dos últimos anos. Foram relatadas, contudo, dificuldades decorrentes da morosidade da justiça e retrocessos na área de reconhecimento da verdade, com o desmantelamento de arquivos, grupos e órgãos afetos à temática. Em 2017 foi implementada a Comisión Bicameral de Identificación de las Complicidades Económicas durante la última dictadura militar que buscará investigar o papel dos agentes econômicos durante a ditadura argentina, o que merece ser celebrado, dada a dificuldade histórica de punição/responsabilização desses setores ao longo dos anos.
Notam-se os equívocos cometidos pelo Estado argentino no que tange a garantia de não repetição e construção da memória nacional, seja pela ausência de metodologia específica para o trato da questão no plano nacional sobre direitos humanos ou pelas “contribuições” estatais na obstaculização do acesso à informações relativas aos julgamentos de crimes de lesa humanidade. Tendo esse dado em conta, o relatório elenca recomendações para o devido trato da temática no país – entre as quais pode-se citar a necessidade do Poder Executivo retomar políticas públicas que foram desmontadas e o avanço nas investigações e julgamentos de empresas envolvidas em crime de lesa humanidade – e efetivação dos pilares Memória, Justiça e Verdade.
BRASIL
O informe brasileiro foi construído à luz do contexto de instabilidade política que se arrasta desde 2014 no país e que culminou no impeachment de Dilma Rousseff em 2016. No que tange à ações institucionais para implementar o Direito à Verdade, foram entregues relatórios finais de diversas comissões da verdade. Também houve progresso na desclassificação de documentos e acesso à informação, mediante decisão unânime proferida pelo Plenário do STF, que determinou acesso irrestrito aos arquivos dos julgamentos realizados no Superior Tribunal Militar (STM) durante a ditadura militar.
O Brasil ainda encontra entraves na responsabilização criminal dos responsáveis por graves violações a direitos humanos no período da ditadura militar, mesmo após sua condenação perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos em 2010, no caso Gomes Lund. Infelizmente, o Judiciário Brasileiro ainda se recusa a reconhecer a imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade ocorridos no período ditatorial e tem utilizado a Lei de Anistia (Lei nº.683/1979) como pretexto para evitar responsabilização dos agentes estatais de repressão.
Na vertente das reparações, o relatório destaca a inédita interferência governamental na composição e independência da Comissão de Anistia Política do Ministério da Justiça e da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos. Como medidas de memória, apontam-se a realização de exposições e a publicação dos relatórios do resultado da pesquisa desempenhada pela Rede Latino-Americana de Justiça de Transição, que fazem parte do projeto Memorial da Anistia.
Por fim, o relatório brasileiro recomenda atenção aos retrocessos vividos e, como resposta, sugere o fortalecimento das redes comprometidas com a efetivação da justiça de transição, que devem cobrar atenção às pautas de direitos humanos não só no âmbito institucional, mas também no discurso político em geral.
CHILE
O informe destaca o fim do segundo mandato presidencial de Michelle Bachelet e aponta falhas no cumprimento da agenda de justiça de transição durante os 08 (oito) anos de seu governo. Fracassaram os esforços legislativos para revogar a lei de embargo que pende sobre os arquivos da segunda comissão da verdade chilena e pendem de execução as promessas de abolição dos efeitos da lei de anistia de 78. O documento aborda os obstáculos no acesso aos resultados dos trabalhos realizados pelas duas comissões da verdade no país, as Comisión Rettig e Comisión Valech, sendo que as restrições colocadas por essa última incitou a produção de projeto de lei com intuito de suspensão do embargo, a qual, entretanto, não foi aprovada.
Destaca-se a ampliação do rol de tipos penais pelos quais se processa e condena autores de crimes e a maior tendência, nos anos anteriores, a aplicar penas privativas de liberdade para casos de tortura. Houve progresso nas iniciativas oficiais sobre desaparecimento forçado e foram cumpridas algumas das diretrizes traçadas pela Corte Interamericana no caso “Omar Humberto Maldonado Vargas y otros vs. Chile”. Destaque para promulgação de lei em 2016 que qualifica a violência sexual expressamente como tortura e proíbe os tribunais militares de exercer jurisdição sobre alegações de tortura cometidos por ou contra civis.
Por fim, o relatório sinaliza a necessidade de adoção de determinadas medidas, entre as quais cita-se as relacionadas com o fortalecimento da sociedade civil, a revisão da situação atual do sobreviventes de crimes cometidos durante a ditadura e a resolução da querela relativa ao status do acerca da Comisión Valech.
MÉXICO
O relatório faz referência aos momentos recentes de violência no país e revela números assombrosos sobre o histórico de instabilidade social. O documento revela um descompromisso estatal na promoção da verdade – seja por meio da ocultação de informações ou através da consideração dos crimes cometidos como eventos isolados; alguns avanços iniciais com a promulgação da Ley General para Prevenir, Investigar y Sancionar la Tortura y Otros Tratos o Penas Crueles, Inhumanos o Degradantes; a visibilidade atribuída à temática da corrupção estrutural e os contributos dessa para o processo de democratização no país. O programa de reparações se mostra deficitário, como evidenciam os dados elencados no relatório e, tendo isso em conta, formou-se assembleia consultiva – formada por membros da sociedade civil – com o intuito de impulsionar o ritmo das reparações.
Ao final, reconhece-se os poucos avanços operados no México, devidos em grande parte, como destaca o documento, pela debilidade democrática no país. A implementação das leis relacionadas a tortura e desaparecimento forçado e necessidade da autonomia de órgãos especializados na análise contextual da violência no país se revelam uma grande preocupação; visualizando-se, assim, a importância de apoio internacional na aplicação das medidas de justiça transicional no México.
PERU
O relatório peruano destaca a postura paradoxal assumida pela República do Peru; pois, se de um lado o Estado abraçou algumas das recomendações da Comisión de la Verdad y Reconciliación – podendo se citar as reparações coletivas, reparações na educação e a busca por pessoas desaparecidas -, por outro, o Judiciário atuou morosamente no acolho de casos emblemáticos relacionados a crimes cometidos pelas Forças Armadas.
Tratando dos mecanismos pelos quais pretende-se a concretização da justiça transicional no Peru, o relatório elucida os grandes ganhos no que tange à promoção da verdade, devidos à incitação ao diálogo pelo Ministerio de Justicia y Derechos Humanos com as organizações de vítimas e ao investimento na busca por desaparecidos políticos, fruto da aplicação da Ley de Búsqueda de Personas Desaparecidas, a qual se propõe a centralizar o enfoque humanitário nos processo de busca, recuperação, restituição e identificação de restos mortais de pessoas desaparecidas. No que tange à Justiça destaca-se a maior atenção dada às organizações de vítimas e, tristemente, a pouca atenção midiática aos processos judiciais.
O programa de reparações encabeça alguns avanços, especialmente no que toca a educação – pois, de acordo com o documento, em 2017 foram destinadas, para vítimas do conflito armado interno, 395 bolsas integrais de estudos para o ensino superior em nível nacional –, todavia se lamenta o atraso e a desarticulação na implementação dos programas reparatórios, dificultando o acesso a todos os vitimados. As conclusões do relatório destacam o clima político débil do país, a atuação do judiciário – com alto poder de invisibilização das vítimas –, e, por fim, assinalam o empoderamento da sociedade civil no diálogo com o Estado, o que reverbera em melhorias das condições de esclarecimento de demandas e participação.
URUGUAI
As estratégias de reparação no país se estruturaram por meio, primeiramente, das Comissões da Verdade e, de modo posterior, pelo Grupo de Trabajo por Verdad y Justicia. A primeira dessas comissões, denominada Comisión para la Paz, é criada em 2000 e apresentou seu relatório final no ano de 2003, o qual foi alvo de críticas por parte dos familiares das vítimas, seja por conta da insuficiência dos dados e até da não correspondência com os fatos e depoimentos. O Grupo, criado em 2015, sob a presidência de Tabaré Vázquez, objetiva o fornecimento de mecanismos adequados para a promoção da Justiça e garantia de não repetição e mantém-se atuante atualmente. O Grupo detém ainda alguns compromissos inconclusos, como uma nova busca de testemunhos – a serem recolhidos com metodologia diferente da utilizada pela Comisión para la Paz –, e a intensificação da cooperação com o Poder Judiciário, o que tem gerado pressionamento por parte das organizações sociais.
O relatório da elucida a entristecedora morosidade do sistema de justiça em tratar causas relacionados os passado recente, o que foi destacado no informe anual da Anistia Internacional. O mesmo diagnóstico é feito pelo Observatorio Luz Ibarburu (OLI): denuncia-se parcos avanços, no ano de 2017, no que diz respeito aos processos e a falta de investigação sobre os crimes de lesa humanidade, além de assinala-se a ausência do Estado nas audiências da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).
No que tange às estratégias de para a garantia de não repetição e memória, criou-se plano nacional de educação em direitos humanos, apresentado oficialmente em agosto de 2017, e no Centro Cultural Museo de la Memoria – aberto a mais de uma década atrás e contendo uma exposição permanente sobre o período ditatorial no país – realizaram-se inúmeras referidas à temática. Como depreende-se, há uma insuficiência na aplicação dos mecanismos de justiça transicional, contudo, o relatório do Observatorio Latinoamericano para la investigación en Política Criminal y en las reformas en el Derecho Penal (OLAP) deixa entrever a esperança em maiores avanços, derivado da maior independência adquirida pelo Ministério Público no país.
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