junho 10, 2020
No auge de uma grave crise sanitária, provocada pela pandemia de coronavírus, o Presidente Jair Bolsonaro convocou e prestou apoio à protestos contra o Congresso e o Supremo Tribunal Federal, que ocorreram em 15 de março.
Esta postura de Bolsonaro, além de atacar as instituições da República e o regime das liberdades democráticas, atenta contra a saúde pública, na contramão de recomendações da comunidade internacional e diretrizes do seu próprio governo para conter o avanço do SARS-COV-2 (coronavírus).
Apesar das inúmeras críticas recebidas, no âmbito nacional e internacional, na última semana, surgiram notícias sobre a convocação de novo ato para 31 de março em frente aos quartéis, data em que são celebrados 56 anos do golpe civil-militar brasileiro.
Além do ataque ao direito à memória e verdade do período de exceção, o tema impõe reflexão sobre os impactos do relacionamento entre o Governo e as Forças Armadas e da pandemia de coronavírus para a democracia brasileira.
Haggard e Kaufman analisam reversões democráticas sob o prisma da “síndrome da democracia fraca”, que possui três componentes: pretorianismo, institucionalização fraca e baixo desempenho econômico. O pretorianismo consiste na “incapacidade de um governo democrático em controlar efetivamente as Forças Armadas” [1].
Nesses sistemas, militares possuem controle orçamentário e de gestão de seus quadros, são enxergados como árbitros neutros do processo político e alçados à posições de prestígio em órgãos decisórios como Ministérios. Trata-se de processo danoso à democracia pois, nele, as elites consideram as forças armadas como potenciais aliadas em conflitos e há risco de intervenção associado à tentativas civis de reverter essa dominância/revogar prerrogativas militares.
Mariana Rezende Oliveira [2] identifica traços de pretorianismo no Brasil, intensificado no Governo Bolsonaro, composto por número recorde de militares desde a redemocratização, alguns dos quais permanecem na ativa, mesmo ocupando cargos do alto escalão.
Não raro, militares do Governo adotam para si discursos políticos com implicações institucionais. É o caso do Comandante da Força Nacional de Segurança, Coronel Aginaldo de Oliveira, qualificou o motim da Polícia Militar do Ceará como “corajoso”, sem notícia de qualquer reprimenda por Bolsonaro e seu Ministro da Justiça, Sérgio Moro.
Em meio às discussões sobre o orçamento impositivo, o Chefe do Gabinete de Segurança Institucional – GSI, o General Augusto Heleno afirmou que o Executivo seria “vítima de chantagem do Legislativo”, aprofundando tensão entre as instituições e gerando impasse que culminou nos protestos de 15 de março de 2020.
Nos protestos, que possuem forte viés antidemocrático, as Forças Armadas foram retratadas como árbitro do processo democrático, com o uso ostensivo da imagem de seus integrantes em cartazes e com palavras de ordem, clamando por intervenção militar. Tudo celebrado, em tempo real, nas redes sociais do Presidente que, compareceu pessoalmente ao evento em Brasília.
A realização de atos contra o Congresso e o Supremo Tribunal Federal em frente aos quartéis no dia 31 de março, data em que são celebrados 56 anos do golpe civil-militar, com o apoio do Presidente da República, atenta contra a verdade e memória do período de exceção vivenciado entre 1964-1985 no país e pode ser vista como uma tentativa de posicionar, mesmo que involuntariamente, as Forças Armadas como aliadas do projeto bolsonarista, contexto que se torna ainda mais alarmante no cenário de pandemia que vivenciamos.
Em recente editorial, o Verfassungsblog chamou atenção para o fato de que “em tempos de emergência e crises, o autoritarismo prospera como um vírus”, especialmente porque o estado de emergência possui falhas de regulamentação em diversos países e acaba por possibilitar medidas restritivas de direito que podem servir para a incrementação do autoritarismo ou para o agravamento do declínio democrático. Veja-se Orban, governante da Hungria, autodeclarado “iliberal”, que aproveitou a situação para buscar a aprovação por tempo indeterminado do estado de emergência, aprofundando seu domínio.
No Brasil, alguns autores já alertavam para os problemas oriundos da ausência de regulação específica sobre situações de emergência que envolvam a saúde pública, pois permanece em vigor no país a Lei nº 6.259/75, silente quanto à restrição de direitos fundamentais.
Isso permite que o Executivo, diante do agravamento da crise e aproveitando-se do medo instaurado, anuncie normas excepcionais restritivas de direitos, de constitucionalidade duvidosa e em descompasso com o caráter excepcional destas medidas que, muitas das vezes, sequer são adequadas para lidar com o combate à epidemia.
Nesse contexto, causam preocupação declarações recentes do Presidente Jair Bolsonaro, após aprovado o decreto que reconhece a calamidade pública pelo coronavírus, quanto à possibilidade de decretação do estado de sítio, medida extrema, inconstitucional e descabida para lidar com questões vinculadas à saúde.
Não bastasse a sinalização autoritária do governo federal, a incapacidade do atual Presidente da República para lidar com o problema – cite-se a demora para a implementação de medidas preventivas; a minimização da pandemia; o ataque aos governadores; e o comportamento contrário às recomendações de seu próprio ministério – agravou a crise política no país e tem ensejado pedidos de afastamento do presidente.
Nesse cenário, surgem manifestações para que o vice-presidente e general da reserva, Hamilton Mourão, que já admitiu a possibilidade de uma intervenção autoritária das força armadas em hipótese de caos e anomia, assuma o governo. A este respeito, vale destacar, por sua expressividade, a fala de Janaína Paschoal, deputada mais votada na história do país, pedindo que Mourão conduza a nação por ser “treinado para a defesa”.
Retomando a teoria Haggard e Kauffman, importante ressaltar que os dados por eles coletados demonstram que “países com histórico de pretorianismo exploram ou até mesmo manufaturam crises, para justificar sua entrada na política”. [3]
Em um país com histórico de militarização da política, que ainda luta para que as Forças Armadas reconheçam sua responsabilidade pelos crimes contra a humanidade praticados durante a ditadura civil-militar, é preciso atenção aos impactos negativos do pretorianismo levado a cabo pelo Governo Bolsonaro, situação que se torna ainda mais alarmante em um contexto de pandemia, como a vivenciada pela COVID-19 (coronavírus).
Por Ana Luiza Marques [4] e Mariana Tormin Tanos Lopes [5]
Leia mais em:
1. Por que Bolsonaro precisa ser impichado – https://verfassungsblog.de/why-bolsonaro-needs-to-be-impeached/ [em inglês]
2. Agamben, corona vírus, estado de exceção e vidas nuas – https://www.academia.edu/42264072/Agamben_corona_v%C3%ADrus_estado_de_exce%C3%A7%C3%A3o_e_vidas_nuas
3. Escassez, Praga e Pestilênça – https://verfassungsblog.de/dearth-plague-and-pestilence/ [em inglês]
[1] HAGGARD, Stephan. KAUFMAN, Robert. Dictators and Democrats: Masses, Elites and Regime Change. Princeton and Oxford: Princeton University Press, 2016 p. 225.
[2] OLIVEIRA, Mariana Rezende de. SÍNDROME DA DEMOCRACIA FRACA”: o que o Brasil pode aprender com o declínio democrático em países de renda média. Manuscrito não publicado.
[3] HAGGARD, Stephan. KAUFMAN, Robert. Dictators and Democrats: Masses, Elites and Regime Change. Princeton and Oxford: Princeton University Press, 2016 p..226.
[4] Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFMG. Pesquisadora do Centro de Estudos sobre Justiça de Transição (CJT/UFMG).
[5] Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFMG. Pesquisadora do Centro de Estudos sobre Justiça de Transição (CJT/UFMG).