janeiro 20, 2021
Em prefácio à edição brasileira da obra “Crises da Democracia”, Adam Przeworski (2020) informa que quando iniciou a escrita de seu livro o Brasil não seria um país em crise, visto que suas instituições apresentavam uma solidez. Todavia, o autor expõe que a situação começou a se modificar após o ano de 2014, ano em que o candidato à presidência da República Aécio Neves não aceitou a vitória de sua oponente.
Outros sinais de uma crise iminente teriam sido, de acordo com o autor, o impeachment da presidente Dilma Rousseff e o impedimento da candidatura de Lula às eleições por meio do que chamou “remoção juridicamente arquitetada” (PRZEWORSKI, p.11, 2020). Ao final desse prefácio, Przeworski – apesar de apresentar nas entrelinhas que a eleição de Bolsonaro representou o momento culminante de configuração de uma crise democrática – informa que caberia aos leitores brasileiros a tarefa de compreender ou não o Brasil como um país inserido no contexto de uma crise democrática. Desse modo, nossa democracia estaria em crise?
A resposta a essa pergunta parece óbvia para muitos e se encontra estampada nos textos anteriores deste blog – ao que convidamos a todos à leitura. Estamos imersos em uma crise democrática que se configura como uma crise generalizada das instituições: as diretivas neoliberais do Governo Bolsonaro apontam para um desmonte de direitos, o Poder Legislativo parece apenas reproduzir os ditames de um governo que o controla e o Poder Judiciário enfrenta séria crise de legitimidade. Diante desse cenário, o que nos espera no futuro? É a essa pergunta que tentaremos responder neste texto.
A historiadora Fabiane Costa Oliveira em seu artigo “Os usos políticos do passado: Os atos rememorativos em torno do dia 31 de março de 1964” dialoga com as reflexões de Alfredo Bosi. A historiadora tece que para Bosi as datas são como pontas de icebergs, “as pontas de icebergs importam ao navegador muito menos pelo que revelam e muito mais pelo que ocultam. Assim são as datas para os historiadores”(OLIVEIRA, 2013). É através desta relação que entramos na reflexão sobre os usos do passado.
Existem certos passados que estão presentes no hoje e não estão presentes por acaso, já que constituem parte fundamental e instrumentalizada de uma disputa de poder. Em momentos de crise política no Brasil essa disputa se intensifica e com essa intensificação nos deparamos constantemente com usos políticos do passado autoritário brasileiro.
Nesse sentido, é importante fazermos algumas perguntas: Por que no Brasil assistimos constantemente nos últimos anos os usos do passado da ditadura? Quais são os principais motivos que fazem com que esses usos se tornem reais e passíveis de serem reproduzidos e incorporados? Qual a relação desses usos políticos do passado autoritário da ditadura com a instabilidade democrática?
O período da redemocratização no Brasil foi marcado pela impunidade aos torturadores, que foi intensificada tanto pela interpretação da Lei de Anistia dada pelo Supremo Tribunal Federal na análise da ADPF 153, quanto pela impossibilidade de acesso aos arquivos da ditadura. Assim, as marcas da impunidade e da não abertura dos arquivos construíram os elementos para a existência de um “não acerto de contas com o passado”.
Com o fim da Ditadura Militar seus apoiadores e os grupos da sociedade civil que colaboraram para a manutenção do regime não desapareceram, já que eles continuaram nos espaços institucionais e presentes na sociedade. Em momentos de crise política e disputa, esses grupos encontram nessa ferida aberta elementos que justificam e tornam possíveis a defesa do passado autoritário da ditadura.
O Presidente eleito Jair Bolsonaro, fala com a imprensa após reunião com os futuros comandantes das Forças Armadas, no Comando da Marinha, em Brasília. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
A grande expressão desse fato é o presidente da República Jair Bolsonaro ter defendido, durante toda a sua trajetória como parlamentar e hoje como chefe de Estado, a Ditadura, o que carrega altas doses de ataque às instituições, às liberdades individuais e à democracia. Bolsonaro declarou seu voto favorável ao Impeachment de Dilma Rousseff exaltando a figura do torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, saindo do parlamento sem responder por esse ato.
Portanto, se temos a utilização de um passado autoritário e anti democrático, um dos desdobramentos dessa utilização na relação dos espaços institucionais com a sociedade civil é a inflamação de atos contra as instituições democráticas. Assim, os usos políticos deste passado colaboram para a existência da instabilidade democrática na medida em que alimentam esses ataques: a sociedade civil, ao reproduzir esses ataques, se sente legitimada por um discurso institucional, que se retroalimenta, por sua vez, dessas mesmas falas produzidas por alguns setores da sociedade.
Diante disso, resta evidente que a elaboração desse passado se faz necessária para a construção de um país democrático, o que passa, sobretudo, pela responsabilização dos agentes perpetradores de violências de Estado, bem como pela adoção de políticas de memória e verdade efetivas. Essa dimensão de elaboração é indispensável para que o olhar para o futuro seja comprometido com a democracia, e não com o autoritarismo que ora se descortina em nosso horizonte.
Quando neste texto se argumenta que um cenário autoritário se descortina no horizonte brasileiro não se pretende fazer um mero exercício de futurologia, visto que o presente tem nos fornecido sólidas e incontestáveis evidências do avanço do autoritarismo do governo Bolsonaro.
Um primeiro ponto a ser destacado diz respeito à fala do presidente à apoiadores quando da invasão ao Capitólio por extremistas norte-americanos. Bolsonaro informou que caso o Brasil não adotasse o sistema de voto impresso em 2022, teria-se um problema maior do que o vivenciado pelos Estados Unidos.
Essa ameaça, ocorrida no dia 7 de janeiro de 2021, se soma a outra realizada em 22 de dezembro de 2020, em que o presidente diz a apoiadores que não havendo voto impresso, podia-se esquecer a eleição.
Essas ameaças configuram claro crime de responsabilidade, visto que atentam contra os direitos políticos conforme previsão do artigo 4, III, da Lei 1.079/50, bem como colocam sob ameaça o Estado Democrático de Direito.
O sistema eleitoral brasileiro é referência mundial em segurança, confiabilidade e tecnologia. As urnas eletrônicas representam importante avanço em termos democráticos para um país que no início do Século XX foi marcado por uma política definida pelo voto de cabresto em currais eleitorais dominados pelo coronelismo.
As possibilidades de fraudes eleitorais por meio do voto impresso são incontestáveis e o desejo bolsonarista por sua implantação só apontam para um horizonte autoritário – que, curiosamente, aqui também remete a um passado autoritário e antidemocrático ligado ao coronelismo.
Um segundo ponto que indica o avanço autoritário do Governo Bolsonaro é sua postura perante a crise sanitária vivenciada atualmente no Brasil. Para a configuração dessa questão é necessário observar que seu governo é formado essencialmente por ministros componentes das Forças Armadas, o que, proporcionalmente, supera até mesmo a quantidade de Ministros pertencentes as FA durante os governos da Ditadura.
Essa informação poderia não ser significativa caso o histórico brasileiro e do atual governo federal não fossem atrelados à Ditadura Militar. Além disso, a inexperiência dos Ministros em relação à área para qual foram designadas é notória, o que restou evidente após a indicação do general Eduardo Pazuello para o comando interino do Ministério da Saúde.
Diferentemente dos outros Ministros que ocuparam a pasta, Pazuello, como um bom integrante das Forças Armadas, obedece ao seu superior hierárquico no governo federal de modo a dar vazão aos negacionismos científicos, fake news e posicionamentos ideologicamente orientados do bolsonarismo.
Ocorre que essas orientações foram um dos fatores responsáveis pela intensa crise sanitária vivida atualmente no Brasil e que tem hoje como seu ponto culminante a ausência de oxigênio nos hospitais de Manaus. A omissão e a inoperância do Ministério da Saúde são responsáveis pela crise sanitária, já que ao invés de seguir os protocolos sanitários defendidos mundialmente por médicos e estudiosos comprometidos com a saúde pública, o governo prefere orientar a população a adoção de medidas preventivas, como o uso da famosa hidroxicloroquina, que além de serem ineficazes de acordo com pesquisadores, podem causar problemas à saúde.
O caminho percorrido por este texto apresenta como a crise e a instabilidade democrática que vivemos hoje no Brasil têm forte relação com o passado autoritário vivido pelo país durante a ditadura de modo que o horizonte que se projeta em 2022, por exemplo, é um horizonte com grandes resquícios de um não acerto de contas com o passado. Todavia, além de apontar para um autoritarismo passado, o que se descortina diante de nós é um futuro também autoritário sob novos contornos, visto que ameaças à ordem democrática são emanadas pelo presidente da República.
Contudo, apesar do futuro que por ora enxergamos, não compreendemos que estão anuladas as possibilidades de um horizonte democrático e emancipador. Pretendemos com este texto apenas contribuir, como tantos cidadãos têm feito e cada um a seu modo, com um sinal de alerta de que precisamos seguir atentos e fortes.
Construir elementos para o acerto de contas com o passado da ditadura é passo fundamental para a existência da estabilidade democrática no presente e no futuro do Brasil, bem como construir elementos que possibilitem a defesa e o fortalecimento das instituições brasileiras. É necessário seguirmos nas mobilizações em defesa da democracia, da ciência e, fundamentalmente, da vida.
PRZEWORSKI, Adam. Crises da democracia. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.
OLIVEIRA, Fabiane Costa . Os usos políticos do passado: os atos rememorativos em torno do dia 31 de março de 1964. In: XXVII Simpósio Nacional de História – Conhecimento histórico e diálogo social, 2013, Natal – RN. XXVII Simpósio Nacional de História – Conhecimento histórico e diálogo social, 2013.
Por Hygor M. Faria [1], Júlia Guimarães [2].
Leia mais em:
[1] Mestrando em História na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Pesquisador e extensionista voluntário do CJT-UFMG.
[2] Mestranda em Direito na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pesquisadora bolsista (CAPES). Pesquisadora associada ao CJT-UFMG.