República e escravidão: transição democrática para quem?

novembro 20, 2019

Blog Democratizando

Nota dos editores: O post de hoje é parte da nossa série de posts convidados. Nestas oportunidades, o Democratizando abre espaço para discussões complementares ao nosso foco – justiça de transição e declínio da democracia –  para ouvir especialistas à respeito de temas que contribuem para uma leitura mais abrangente do cenário político brasileiro. Boa leitura!

Emilio Meyer e Mariana Rezende

 

No dia 20 de novembro, comemora-se o dia da Consciência Negra no Brasil. Para discutir essa data, é preciso retomar acontecimentos contemporâneos à Abolição da Escravidão, de 1888, como a Proclamação da República e a promulgação da Constituição de 1891. São três fenômenos históricos que representam um importante momento de transição no Brasil, os quais vão orientar a construção deste Estado. Igualmente importante para esta construção é o processo de redemocratização, marcado pela promulgação da Constituição de 1988. É importante falar em transição, porque ao final devemos nos questionar: transição democrática para quem?

Uma república sem igualdade política

Se o fim da escravidão acenderia uma centelha de esperança nos corpos e corações das pessoas negras escravizadas, que lutavam incansavelmente por sua liberdade e igualdade, imagine aliar isso à ascensão de um novo regime que prometia acabar com os privilégios estamentais do Império? Um regime que, ao menos em tese, tem entre seus principais fundamentos a ausência de privilégios institucionais e religiosos e a alternância no poder. Estamos falando da república, conceito que, embora evoque a afirmação do valor da liberdade política e do alto nível de igualdade dos cidadãos, ainda convive com afirmações da existência de um príncipe herdeiro no Brasil.

O “em tese” acima citado é para demonstrar que, na prática, o que se viu não foi bem assim. A não ser pela Família Real, a república manteve privilégios das elites. Seria sonhar demais: imaginar que um país que nasceu e se desenvolveu em trezentos anos sobre os ombros de pessoas negras escravizadas faria uma transição justa para uma república sem escravizados, e acabaria com seus privilégios.

Lilia Schwarcz, em sua última obra “Sobre o autoritarismo brasileiro“, afirma que, ao contrário do senso comum, o brasileiro é um indivíduo autoritário. E foi justamente pelo processo da escravidão que essa característica se desenvolveu, criando uma espécie de racismo estrutural que tem seus efeitos perpetuados ainda hoje. Por meio do  processo de escrita da memória oficial do país, foram criadas tecnologias de governo em detrimento das memórias das pessoas escravizadas, que deveriam ser relegadas à clandestinidade ou aos locais subterrâneos da república. É o que o sociólogo Michel Pollak chama de  enquadramento de memória, esse processo de (re)construção da memória oficial coletiva.

A respeito destas tecnologias, o professor Achille Mbembe trata do conceito de necropolítica. Ela consiste em uma política que escolhe quem deve viver e quem deve morrer, ocorrendo predominantemente em países oriundos do processo de colonização forçada. Nesse sentido, ao se negar a humanidade a determinados grupos, localizados em certos territórios, elegendo-os como inimigos, justifica-se qualquer tipo de violência, até mesmo a morte. Se esse conceito parece bem adequado ao Brasil atual, não é demais retomar as origens dessas práticas.

É importante lembrar que o fim da escravidão, a proclamação da República e a promulgação da Constituição de 1891 se desdobraram no século XIX, período em que as teorias racialistas alcançaram seu auge, sobretudo no Brasil, onde boa parte da elite local se apropriou delas. A questão passou a ser a necessidade de deixar a escravidão no passado, pois nascia a partir dali um novo país, presente no hino da Proclamação da República: “(…) Nós nem cremos que escravos outrora, Tenham havido em tão nobre País… (…)”.

A inexistência de políticas de amparo material e simbólico aos ex-cativos reforça a tentativa de relegar a escravidão ao passado imperial. Essa deveria ser uma responsabilidade do passado escravista e não do então presente promissor republicano. Lembre-se da Queima dos Arquivos da Escravidão, em 1890, determinado pelo então Ministro da Justiça Rui Barbosa, que sob a justificativa de evitar indenizações aos proprietários de escravos, trouxe grande prejuízo para a memória coletiva do povo negro.

A Constituição de 1891 veio para institucionalizar os valores republicanos. Houve, por um lado, a ampliação do conceito de cidadania civil, aquela que determinaria quem seria reconhecido como pessoa brasileira, mas manteve-se a restrição sobre a cidadania política, aquela que permitiria às pessoas intervir na vontade política do país. Por exemplo, em seu artigo 70, § 1º, estipula que os mendigos e os analfabetos não seriam considerados cidadãos, sendo necessário destacar uma desagradável “coincidência”: a maioria do contingente de mendigos e analfabetos era oriunda direta ou indiretamente da escravidão.

A abolição da escravidão, o crescimento das teorias racialistas, bem como a ausência de qualquer política de amparo material para essas pessoas, e o silêncio a esse respeito levam a crer mais em uma tecnologia de governo pautada em higienização popular e eliminação de uma espécie de inimigo. Esperava-se que, ao deixar estas pessoas à sua própria sorte, elas desapareciam de forma “natural”, permanecendo somente os “fortes”, como lembra o professor Hilton Costa.

Racismo e tolerância na República

Na transição do Império para a República, percebe-se que, para as pessoas negras recém libertas, a única mudança foi da casa grande para os subúrbios e para as primeiras favelas do país. Mesmo diante desta exposição à precariedade humana e a todo tipo de violência, a luta das pessoas negras para retomar suas condições humanas jamais cessou. É importante lembrar junto a Lilia Schwarcz que os proprietários do período imperial também se apropriaram da República.

Nos conturbados anos 1930, o Brasil, diante das falhas das primeiras décadas da República, precisava criar uma nova imagem, para marcar o novo momento. É neste contexto que o governo Getúlio Vargas se apropria da ideia de democracia racial, cunhado pelo sociólogo Gilberto Freyre, para demonstrar ao mundo que o processo de escravidão brasileiro foi “menos violento” que os outros, em mais um esforço de escamotear as disputas da população negra e subjugá-las às memórias subterrâneas do país.

O mais contraditório nesse período é o fato de que, ao mesmo tempo que se pregava para o mundo que as “raças conviviam em harmonia no Brasil”, internamente criava-se uma política da tolerância. Assim, a política institucional do Estado brasileiro se baseava em estimular a educação eugênica, conforme estabelecia o artigo 138, b, da Constituição de 1934. Somam-se a isso os debates da Constituinte de 34, nos quais se defendeu que “(…) Jamais seremos uma grande nação se não cuidarmos de defender e melhorar a nossa raça.”

A transição para um país “moderno” estaria condicionada à eliminação de um novo inimigo, no caso, a presença das pessoas negras. Dessa forma, o progresso nacional somente aconteceria se fosse adotada uma política de embranquecimento da população. Desse momento em diante há o aumento do processo de imigração de europeus para o Brasil, fato de conhecimento geral, invisibilizado pela narrativa oficial de que o Brasil é um país receptivo, de pessoas solidárias e “pacíficas”.

Já na ditadura do Estado Novo (1937-1945), qualquer tipo de manifestação política contestatória era reprimida violentamente. A discriminação racial aumentava à medida em que a competitividade do mercado ampliava, pois as pessoas negras continuavam expostas à precariedade e marginalizadas nas favelas. Como instrumento de resistência e denúncia dessas práticas, na década de 1940, destacavam-se a União dos Homens de Cor (UHC) e o Teatro Experimental do Negro (TEN), sob a liderança do intelectual Abdias do Nascimento. Entre suas pautas estavam: a defesa dos direitos civis das pessoas negras brasileiras, bem como a criação de uma legislação antidiscriminatória.

Como a ditadura civil-militar lidou com o movimento negro?

Com a instauração da ditadura militar, em 1964, cria-se uma ética própria na luta contra um inimigo comum, ou seja, todo aquele que pudesse ser considerado contrário às ideias políticas e morais do regime. Era, entretanto, necessário adotar uma imagem que minimizasse ou escondesse as arbitrariedades cometidas pelo regime. Isso trouxe de volta a democracia racial, agora como política oficial de Estado, com a criminalização da incitação do ódio ou a discriminação racial.

Nesse período, o movimento negro brasileiro estava fortemente influenciado pelos movimentos do pan-africanismo, do Black Power, dos Panteras Negras e da luta pelos direitos civis nos Estados Unidos. Ou seja, um período de valorização da cultura negra. Hoje sabemos, por meio de documentos oficiais, que tanto o Exército quanto a Polícia Federal mantinham sob constante vigilância o movimento negro no Brasil.

A Ditadura entendia que a população negra poderia utilizar as iniciativas de denúncias contra o racismo estrutural como pretexto para deturpar a ordem social. Logo, se o Estado brasileiro adotou a democracia racial como política, a incitação ao ódio racial não servia para perseguir pessoas brancas, mas sim as pessoas negras que sofriam o racismo e reivindicavam tratamento igualitário, seja do ponto de vista cultural, religioso ou político. 

A título de exemplo, é no final da década de 1950 e início de 1960 que se tem os primeiros estudos sobre cotas raciais nas instituições públicas, discussão que se enquadraria no tipo penal de incitação ao ódio racial. A repressão ditatorial atrasou essa discussão em, ao menos, 50 anos. Mais uma tecnologia de governo para manter a população negra sob controle, afinal, como o próprio documento oficial dizia: “o negro, na medida em que se organiza, passa a ser considerado um perigo”.

Chega o período de transição democrática e a promulgação da Constituição de 1988. Alguns avanços são conquistados, como a criminalização do racismo tanto no texto constitucional, quanto na lei, mas ainda são mínimos, dado o tamanho do sofrimento impingido à população negra às custas de um suposto progresso.

A transição democrática alcança os corpos negros?

Em 18 de novembro de 2011 se institui a Comissão Nacional da Verdade (CNV), para investigar as graves violações de direitos humanos, praticadas por agentes do Estado, ocorridas entre 1946 e 1988. O relatório final da CNV concluiu que as graves violações de direitos humanos foram uma parte de uma política estatal, configurando crimes contra a humanidade. Entretanto, a CNV investigou os crimes cometidos contra indígenas, populações LGBTQ+, mas não sobre a questão negra. 

E isso é no mínimo curioso, pois fomos o último país a extinguir a escravidão oficialmente, somos a maior população negra fora do continente africano e toda a tecnologia de governos apresentada na linha do tempo traçada nesse texto tem algo em comum: a escolha daqueles que podem viver ou daqueles que se deixa morrer – a necropolítica. E não foi por falta de aviso. O Movimento Negro Unificado (MNU), no processo de discussão da anistia, chamou atenção para este fato.

O professor Edson Teles, em entrevista concedida ao Podcast Mas e se? afirma que, nesse processo de transição democrática, o aparelho de repressão do Estado deveria ser remodelado de forma a manter sua truculência, mas com o verniz democrático. É daí que surge a ideia de uma segurança pública democratizada. Uma vez passado o verniz democrático, mesmo sem nenhuma reforma estrutural verdadeira,  fez-se necessário substituir o inimigo subversivo. Esse novo “inimigo” sempre esteve presente antes, durante e depois da ditadura: o corpo negro.

Sobre todos esses marcantes momentos de transição nacional, fim da escravidão formal, instituição da República, seis constituições, duas ditaduras, me pergunto se essas transições,  democráticas ou não, tiveram algum efeito relevante para a população negra? Agravaram ou mantiveram as pessoas negras em situação de subordinação? Se subirmos em qualquer favela brasileira, veremos que o “inimigo”, “o mal”, continua exposto a todo tipo de violência, à precariedade e até mesmo à morte. Em outras palavras, não há que se falar em transição democrática nesses espaços.

Toda conquista que o povo negro adquire com muita luta, vem acompanhada de um retrocesso: se é liberto da escravidão, sua cidadania política é restringida; se tem direito às cotas para inserção nas instituições públicas, o governo, dito progressista, estabelece como crime hediondo o tráfico de drogas, sabendo que a grande vítima da guerras às drogas é a população negra, aumentando de vez as novas senzalas que hoje conhecemos como encarceramento em massa. Os instrumentos de dominação praticamente são os mesmos, apenas adaptados ao seu tempo: penas cruéis na escravidão, versus a subversão da ordem pública, autos de resistência e excludente de ilicitude presente no pacote anti-crime do Ministro Sérgio Moro.

Inúmeros são os casos de sistemáticas violações de direitos humanos da população negra, da escravidão aos dias atuais. “O inimigo”, “o mal” e a vítima da opressão são sempre os mesmos. A escravidão por si só já mereceria uma Comissão da Verdade. Um modelo de justiça de transição, que se vale do instrumento de uma Comissão Nacional da Verdade, que se silencia sobre a questão racial, fez a escolha de dar manutenção ao racismo estrutural secular que está impregnado em nossa sociedade.

Se é para acertar as contas com o passado, que seja em forma de aliança, nos termos defendidos por Judith Butler. Uma aliança no sentido forte da palavra capaz, de não escolher que tipo situação precária deve ou não ter primazia. Perceba: há uma fratura na narrativa da memória coletiva nacional e é justamente por meio desta fenda que as memórias clandestinas do povo negro emergem para demonstrar a incoerência narrativa deste processo de enquadramento de memória. É por isso que a pergunta com que iniciamos e terminamos esse texto, no mês da Consciência Negra, vem das memórias clandestinas e subterrâneas da “democracia” brasileira: transição democrática para quem?

Por Deivide Júlio Ribeiro [1]

Você pode refletir mais sobre o assunto em:

[1] Mestre e doutorando pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito e Ciências do Estado da UFMG, com pesquisa financiada pela CAPES. Um dos coordenadores do ALAFIA – Grupo de Extensão e Pesquisa em Direito, Estado e Relações Raciais da mesma instituição.

Referências citadas:

BUTLER, Judith. corpos em aliança e a política das ruas notas para uma teoria performativa de assembleia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.

COSTA, Hilton. Escravidão, liberdade, privilégios e tradição, 2017.

MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: N-1, 2018.

NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro. São Paulo: Perspectiva, 2016.

POLLAK, Michael. Memória e identidade social. In. Estudos históricos. Rio de Janeiro, v. 5, n., 10, 1992, p. 200-212.

SCHWARCZ, Lilia. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.