abril 27, 2021
Recentemente, a Defensoria Pública da União (DPU) ajuizou uma ação para impedir que a Universidade Federal do Rio do Grande do Norte (UFRN) fosse retirada do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (CNPCT), órgão formado, em sua maioria, por ONGs, entidades, instituições e outros membros da sociedade civil.
O pedido para a retirada da instituição de ensino partiu da própria Ministra Damares Alves, à frente do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, após solicitação de parecer à Advocacia Geral da União (AGU). Segundo a AGU, as autarquias federais – tais como universidades federais – não estariam qualificadas para atuar como “entidades civis” junto ao Comitê.
Esta não é a primeira vez que o governo de Jair Messias Bolsonaro tenta interferir nos trabalhos para combater a tortura no Brasil. Em 2019, por meio do Decreto nº 6085/2019, o presidente exonerou os 11 peritos do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT), que poderiam continuar trabalhando, embora sem nenhum tipo de remuneração.
Embora o Decreto tenha sido suspenso por liminar da Justiça Federal do Rio de Janeiro, ele é apenas uma das tentativas do governo federal em desmontar a política nacional de combate à tortura. Mas, o que é o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura? Quais são os motivos por trás dos ataques governamentais ao Sistema e seus órgãos? Por que o governo anda na contramão dos compromissos firmados com a sociedade e com organizações internacionais?
O Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (SNPCT) foi instituído pela Lei nº 12.847, de 2013. Ele é fruto do compromisso firmado pelo Brasil com a Organização das Nações Unidas (ONU), por meio da ratificação, em 2007, do Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes.
O Protocolo tem como objetivo fomentar mecanismos estatais que ajudem na promoção ao combate à tortura e outros tratamentos cruéis e degradantes. Para tal, os Estados devem criar órgãos para traçar estratégias adequadas, além de estabelecerem um sistema de visitas regulares em instituições onde pessoas estejam privadas de sua liberdade.
Nesse sentido, para seguir as determinações impostas pela ONU, também foram criados o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) e o Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (CNPCT), que integram o SNPCT.
O CNPCT é composto por 23 membros: 12 representam a sociedade civil, enquanto 11, o governo federal. O seu papel é fundamental para manter um diálogo com o governo, propor ações estratégicas para a prevenção de qualquer forma de tratamento degradante, além de manter um devido monitoramento das ações levadas adiante no âmbito executivo, legislativo e judiciário. A presença da sociedade é mister para fazer frente às políticas governamentais que possam indicar um prejuízo às garantias fundamentais e aos avanços em políticas públicas já conquistados. Não obstante, membros do Comitê já denunciaram a ausência da Ministra Damares Alves em suas reuniões, bem como a tentativa de inviabilizar as pautas e a atuação da sociedade civil dentro do CNPCT.
O MNPCT, por sua vez, é um órgão composto por 11 peritos que, por meio de atuação independente, sem intervenções do governo federal, possuem acesso irrestrito a qualquer instituição de privação de liberdade. Assim, o trabalho de campo é essencial para averiguar a situação real dos estabelecimentos brasileiros, e verificar se estão sendo seguidos os parâmetros impostos pelas leis nacionais e pelos tratados internacionais.
Entretanto, o MNPCT vem enfrentando ameaças ao seu trabalho: além da tentativa de exoneração dos peritos, o Mecanismo foi impedido pelo Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos de fazer visitas ao sistema prisional do Pará, após denúncias de maus tratos. O fato chamou atenção da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que manifestou preocupação com os impedimentos impostos ao trabalho dos peritos.
A estratégia traçada pelo governo federal é de total inviabilização nos trabalhos realizados pelo Sistema como um todo. De um lado, o impedimento de visitas in loco pelos peritos e a retirada de recursos financeiros é uma maneira de obstruir que informações sejam colhidas e que denúncias sejam devidamente averiguadas. Por outro lado, o silenciamento da sociedade civil ou o impedimento de que universidades, por exemplo, integrem o CNPCT, permite que o governo possua mais controle sobre as organizações que ali participam. Assim, diversas pautas são deixadas de lado e não há diálogo entre governo e sociedade.
Frente a esse cenário de desmonte na política nacional, juntamente com a crise sanitária em razão da pandemia da Covid-19, o já caótico sistema prisional brasileiro presencia cada vez um número maior de casos de tortura. A começar pela própria tortura que representam os estabelecimentos prisionais superlotados em meio a uma pandemia causada por um vírus letal que, para ser combatido, exige da sociedade o distanciamento social e medidas de higiene, fatores que definitivamente não se verificam nos presídios brasileiros.
Ademais, a maior incomunicabilidade vivenciada durante a pandemia tornou dificultoso o acesso ao que acontece dentro do cárcere e, consequentemente, criou maiores oportunidades para alavancar a violência institucional e o uso de técnicas de tortura no tratamento dos presos. De acordo com um levantamento feito pela Pastoral Carcerária, entre 15 de março e 31 de outubro de 2020, foram notificados 90 casos de torturas nos presídios brasileiros, ao passo que, no ano anterior, nesse mesmo período, foram 53 notificações, o que revela um aumento de 70%.
Um episódio recente, em 2021, foi um relatório publicado pela Corregedoria Geral do Tribunal de Justiça do Mato Grosso, que denunciou práticas medievais de tortura impostas aos presos de uma penitenciária em Sinop. A denúncia detalhou as agressões praticadas pelos policiais penais, que incluíam o uso indiscriminado de gás lacrimogêneo, spray de pimenta, tiros com munição não-letal e até práticas como o pau de arara, método conhecido por ter sido usado durante o regime militar.
Tais práticas não são apenas recorrentes, como também são incentivadas. Em videoaula para curso preparatório para concurso da polícia militar, um ex-capitão da Polícia Militar de São Paulo ensinou técnicas de torturas, além de confessar ter participado de atos violentos que levaram à morte de diversos detentos.
Importante ressaltar, todavia, que a pandemia somente evidenciou uma realidade latente de violência institucional dentro do cárcere brasileiro. O ano de 2019, para o sistema penitenciário do Pará, foi marcado pelo chamado “Massacre de Altamira”, rebelião entre os detentos que deixou um saldo de 62 mortos. Tal episódio culminou em uma intervenção federal, autorizada pelo Ministério da Justiça, chefiado à época pelo Ministro Sérgio Moro, através da Força-Tarefa de Intervenção Penitenciária (FTIP), que passou a controlar 13 presídios paraenses.
Em outubro do mesmo ano, o Ministério Público Federal (MPF) fez uma denúncia de torturas e maus-tratos de maneira generalizada dentro dos estabelecimentos sob a custódia dos agentes federais – que chegaram a ser comparados a um campo nazista por uma advogada-membro da OAB – trazendo relatos de presos que sofreram agressões como o uso de spray de pimenta, pauladas de vassouras, pregos nos pés, além da privação de atendimento médico adequado. Em razão da ação do MPF, o Governo Bolsonaro chegou, inclusive, a ser denunciado pela oposição em uma carta que foi enviada às relatorias especiais da ONU que pertencem ao Alto Comissariado para os Direitos Humanos.
O cenário caótico de tortura generalizada no sistema prisional brasileiro também chamou recentemente a atenção da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que publicou um relatório em 12 de fevereiro de 2021, intitulado “Situação dos direitos humanos no Brasil”. No documento, a CIDH mostrou preocupação com a constante negação do passado histórico da ditadura civil-militar, o que gera um processo de desestruturação das políticas, incluindo a Política Nacional de Combate e Prevenção à Tortura. Ressaltou, ainda, que este processo está diretamente relacionado com o crescimento expressivo de casos de tortura nas instituições prisionais brasileiras. Por fim, a Comissão reiterou a importância do MNPCT na proteção dos direitos fundamentais das pessoas em privação de liberdade e declarou ser objeto de preocupação o Decreto Presidencial n° 9.831/2019, que enfraqueceu o Mecanismo.
Mesmo com o conhecimento dessa realidade, a impunidade por tratamentos cruéis e degradantes ainda resiste na ordem democrática pós-1988. Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH), com base em relatório elaborado por especialistas da ONU, a investigação e punição dos agentes do Estado por torturas é praticamente inexistente.
Diante do exposto, convém lembrar que a ordem democrática brasileira se restituiu após longos 21 anos buscando mudar a realidade ditatorial, o que significava evidentemente mudar o panorama institucional de utilização da tortura como prática sistemática pelo Estado. Por esse motivo, a vedação à tortura e outros tratamentos cruéis e degradantes é reconhecida pelo ordenamento jurídico brasileiro de forma absoluta, inegociável e não passível de graduação, à luz da fundamentalidade que envolve a dignidade da pessoa humana.
O Estado Democrático de Direito, por natureza, é incompatível com a tortura, o que nos leva a concluir que o desmonte das políticas nacionais anti-tortura, que vem sendo promovido pelo atual governo, representa um retrocesso imensurável e, inevitavelmente, nos aproxima de uma realidade que remete a um passado sombrio e autoritário.
A estratégia traçada pelo governo federal, portanto, é de interferir no Sistema de Prevenção e Combate à Tortura e sufocá-lo, de dentro para fora, até que seus trabalhos sejam praticamente inviáveis. Assim, Jair Bolsonaro e seus Ministros podem sustentar a narrativa de um país comprometido com os direitos humanos, mas que, em verdade, articula uma verdadeira desconstrução dos direitos fundamentais conquistados na ordem constitucional pós-1988.
Por Milena Coelho Angulo [1], Rafaela Assan Lopes da Silva [2]
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[1] Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Extensionista do CJT.
[2] Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Extensionista do CJT.