Reparação do povo indígena Krenak pelas violações sofridas na ditadura brasileira

setembro 22, 2021

Blog Democratizando . Brasil . Justiça de Transição

Durante a ditadura civil-militar brasileira (1964-1985), muitos povos indígenas foram alvo da política de desenvolvimento econômico do Estado e da repressão que, por meio de invasões de terras, trabalhos forçados, deslocamentos compulsórios e outras violações levaram morte e sofrimento a inúmeras comunidades. De acordo com o Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), ao menos 8.350 indígenas foram mortos em decorrência da ação direta ou da omissão de agentes estatais. Contudo, o próprio Relatório reconhece que o número real de indígenas mortos no período deve ser exponencialmente maior, pois os dados são escassos e representam apenas uma parcela desses povos.

Um dos grupos étnicos mais afetados pelos atos abusivos e arbitrários da ditadura civil-militar foi o povo indígena Krenak. Seu histórico de violações nesse período é um dos mais registrados e estudados do Brasil; no entanto, mais de 50 anos depois dos fatos, o processo de reparação ainda está incompleto.

O último dia 13, por outro lado, foi um marco na busca por reparação: a União, a Fundação Nacional do Índio (Funai) e o estado de Minas Gerais foram condenados judicialmente pelas violações cometidas contra o povo Krenak naquele período. Os réus deverão adotar um conjunto de medidas, dentre as quais se destacam a conclusão do processo administrativo de demarcação da Terra Indígena, incorporando a localidade denominada Sete Salões, considerada sagrada pela comunidade, e a realização de cerimônia pública para que o Estado reconheça as violações e formule pedido público de desculpas ao povo Krenak.

Isso nos leva a pensar: quais foram as violações perpetradas contra os Krenak? Quais medidas foram tomadas até o momento para repará-los? O que a condenação representa para a justiça de transição no Brasil?

Violações cometidas contra os Krenak durante a ditadura

Três episódios críticos marcam as violações sofridas pelos Krenak durante o período ditatorial brasileiro: (i) a criação da Guarda Rural Indígena; (ii) a instalação de um presídio denominado Reformatório Krenak e (iii) seu deslocamento forçado para a Fazenda Guarani.

Em 1969, foi criada a Guarda Rural Indígena, no âmbito da Funai, para realizar o policiamento ostensivo de áreas florestais. Os indígenas foram então recrutados, treinados, vestidos com uniformes militares e encarregados de manter a ordem interna em suas aldeias, realizando prisões arbitrárias e aplicando penalidades, que envolviam até mesmo técnicas de tortura, contra os membros da própria comunidade. A implantação da Guarda Rural Indígena contribuiu para um processo extremamente violento de desarticulação cultural e social, visando à implantação do paradigma assimilacionista vigente.

Ainda em 1969, após o endurecimento do regime militar no Brasil, principalmente após a edição do Ato Institucional nº 5 de 1968, a Funai e a Polícia Militar de Minas Gerais criaram o Reformatório Krenak. Segundo o discurso oficial, tratava-se de um centro de reeducação de indígenas considerados rebeldes.

Reprodução de imagem presente no livro “Os fuzis e as flechas”, de Rubens Valente

Na prática, porém, o Reformatório Krenak era uma prisão que mantinha indígenas de pelo menos 11 outros estados em condições degradantes. Trabalho forçado, tortura e outras formas de violação, como privação de comida e confinamento solitário, eram comuns; e não havia devido processo legal ou fixação prévia da duração da pena.

Além disso, o Reformatório teve um forte impacto sobre o povo Krenak e sua forma tradicional de organização. O controle militar exercido sobre a comunidade impedia o povo Krenak de usar sua língua materna, praticar rituais e realizar suas festas tradicionais. Isso significou a violação da sua integridade cultural e de direitos espirituais.

Devido aos conflitos de terra com fazendeiros, o governo do Estado de Minas Gerais e a Funai realizaram a transferência forçada dos Krenak para a Fazenda Guarani, em 1972. O objetivo era estimular a instalação de empreendimentos econômicos por meio da doação de terras Krenak. Contudo, a Fazenda Guarani, distante duzentos quilômetros das terras tradicionalmente ocupadas pelo povo em questão, tinha características completamente diferentes, com um clima muito mais frio e alimentos escassos. Assim, o povo Krenak passou a estar isolado de seu território tradicional e dos elementos naturais que compõem a visão de mundo Krenak, como o rio Doce, o que agravou o processo de desintegração cultural.

Posteriormente, todo o aparato repressivo do Reformatório Krenak foi transferido para a Fazenda Guarani. Depois de sofrer violações incomensuráveis, os Krenak começaram a fugir e retornar às suas terras tradicionais. Eles conseguiram se estabelecer em uma pequena área na margem esquerda do rio Doce, perto do município de Resplendor (MG), onde habitam atualmente.

Medidas tomadas pelo Estado Brasileiro para reparar danos

Em 23 de março de 2015, o Ministério Público Federal (MPF) apresentou pedido de anistia coletiva à Comissão de Anistia, órgão responsável por reconhecer a opressão do Estado durante a ditadura e conceder indenização às vítimas ou seus familiares. O órgão requereu expressamente “o reconhecimento das violações de direitos humanos perpetradas contra o povo indígena Krenak pelo Estado brasileiro, acompanhado de um pedido público de desculpas; e a indenização econômica coletiva para o povo indígena Krenak, visto que os atos da ditadura provocaram seu colapso social e cultural”.

Além de não ter sido apreciado até os dias atuais, esse pedido esbarra na legislação brasileira que concebe a anistia apenas em nível individual. O procedimento é definido como “individual, exceto nos casos de morte do requerente, quando todos os sucessores e/ou dependentes devem se candidatar em conjunto” (Normas Procedimentais da Comissão de Anistia, art. 1º, §1º). Portanto, não há garantia de que o requisito será interpretado adequadamente considerando a personalidade jurídica coletiva dos povos indígenas.

Personalidade jurídica é o mecanismo jurídico que confere aos cidadãos as condições necessárias para fruição plena dos direitos fundamentais. No caso dos povos indígenas, o exercício desses direitos é realizado de forma coletiva, pois se organizam em grupos e mantêm modos de vida tradicionalmente comunitários.

Uma segunda medida adotada foi uma ação civil pública movida também pelo MPF em 15 de dezembro de 2015, contra a União, a Funai, o Estado de Minas Gerais e Manoel dos Santos Pinheiro, conhecido como Capitão Pinheiro, integrante das Forças Armadas e responsável pela criação e instalação da Guarda Rural Indígena, administração do Reformatório Krenak e transferência compulsória dos indígenas para a Fazenda Guarani.

Quase seis anos depois, em 13 de setembro de 2021, foi proferida sentença favorável condenando os quatro primeiros. Ademais, foi reconhecida a existência de relação jurídica entre o réu Manoel dos Santos Pinheiro e a União, a Funai e o estado de Minas Gerais, visto que o Capitão Pinheiro era agente público e atuou em nome dos entes públicos condenados ao violar os direitos do povo Krenak.

Por fim, em 18 de outubro de 2019, o MPF apresentou ação criminal acusando o Capitão Pinheiro pelo crime de genocídio, alegando que os três episódios acima mencionados foram realizados com o objetivo de destruir a etnia Krenak. O juiz do caso decidiu pela sua admissibilidade; entretanto, sabe-se que nenhum agente envolvido nas violações durante a ditadura foi condenado entre todas as 40 ações penais ajuizadas até agora.

O Judiciário brasileiro tem admitido a tese de que tais crimes prescreveram, ou seja, não seria mais possível punir seus eventuais responsáveis. Essa tese, referendada na Lei da Anistia brasileira, está em oposição ao entendimento consolidado no Direito Internacional dos Direitos Humanos de que crimes contra a humanidade são imprescritíveis. O Estado brasileiro já foi condenado duas vezes perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos por não cumprir o dever de investigar e punir os responsáveis pelas graves violações de direitos cometidas na ditadura. Além disso, o Capitão Pinheiro está com 89 anos, fato que evidencia, mais do que nunca, a necessidade de investir em medidas que vão além do processo penal.

Quais lições podem ser aprendidas?

A ditadura brasileira não significou o início, muito menos o fim, das violações aos direitos humanos impostas aos povos indígenas. O caso dos Krenak é apenas um dentre vários que ainda estão pendentes de reparação e, infelizmente, os obstáculos ao processo de justiça de transição se somam às atuais ações e omissões do Estado brasileiro, a exemplo da inabilidade de gestão da pandemia e do risco aos direitos originários, com a discussão sobre o marco temporal, vulnerabilizando-os ainda mais.

Nesse sentido, faz-se necessário fortalecer os mecanismos de reparação com o desafio de incorporar aos pilares da justiça de transição os elementos da diversidade sociocultural que contemplem a realidade das vítimas de graves violações de direitos humanos. É nesse cenário que a determinação judicial de conclusão do processo administrativo de demarcação da Terra Indígena Krenak representa uma tentativa interessante de adicionar a dimensão coletiva às reparações, indo além das tradicionais medidas de compensação pecuniária.

Ademais, o pedido de desculpas públicas, ao ser formulado em consulta ao povo Krenak e direcionado à comunidade, também poderá representar um avanço no processo reparatório, contemplando a questão coletiva e sendo construída em conformidade com o princípio da centralidade da vítima e com o direito de consulta prévia das comunidades tradicionais. Trata-se de um primeiro passo na construção de garantias de não repetição que concretizem o objetivo de prevenir novas violações.

Por Letícia Soares Peixoto Aleixo [1] e Sophia Pires Bastos [2].

Leia mais em:


[1] Doutoranda e mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Co-coordenadora da Clínica de Direitos Humanos da UFMG.

[2] Mestranda em Direito pela UFMG. Pesquisadora do Centro de Estudos sobre Justiça de Transição da UFMG.