julho 6, 2021
Carlos Alberto Augusto, mais conhecido como Carlinhos Metralha, foi o primeiro réu a ser condenado, em âmbito penal, por atuar na perseguição de opositores políticos durante a ditadura militar brasileira (1964-1985). Na sentença proferida pela 9ª Vara Criminal Federal de São Paulo, em 18 de junho de 2021, o ex-delegado foi condenado a 2 anos e 11 meses de prisão por conduzir o sequestro do ex-fuzileiro naval Edgar de Aquino Duarte em 1971.
A sentença condenatória é resultado de uma denúncia que o Ministério Público Federal ofereceu em 2012 pelo desaparecimento de Edgar Aquino, sequestro que perdura até hoje. Enquanto vigorou a repressão militar, Carlos Augusto atuou no Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo (DOPS-SP) e, conforme provas documentais e testemunhais, manteve Edgar de Aquino incomunicável nas dependências dos prédios do DOI-CODI e DOPS-SP. O número processual é 0011580-69.2012.4.03.6181. A tramitação pode ser consultada aqui.
A sentença histórica, proferida pelo Juiz Federal Sílvio César Arouck, é a primeira no Brasil que condena um agente da ditadura, bem como a primeira que reconhece os crimes da ditadura militar brasileira como crimes contra a humanidade. Mas, por que somente agora, em 2021, estamos diante de uma decisão condenatória inédita, que visa responsabilizar criminalmente um agente perpetrador de violações de direitos humanos no período ditatorial?
A Lei nº 6.683/79, também conhecida como Lei de Anistia, constitui o principal e mais controverso mecanismo legal que garante a total impunidade de agentes da ditadura que cometeram delitos e que violaram as próprias leis da ditadura militar antes vigentes.
Trata-se de uma lei promulgada pelo presidente militar João Figueiredo, em 28 de agosto de 1979, visto por muitos estudiosos como uma auto-anistia, gerando consequências devastadoras na efetivação dos pilares da Justiça Transicional no Brasil.
Sendo um conjunto de mecanismos que visa à superação de um passado marcado por atrocidades, a Justiça de Transição pode ser compreendida a partir de quatro grandes pilares: a garantia do Direito à Verdade e à Memória, as Reformas Institucionais, as Reparações Individuais e o mais emblemático, a Responsabilização de agentes da ditadura.
Considerando esses fatores, antes da condenação no caso Edgar de Aquino, nunca houve êxito na instauração de outros processos penais contra integrantes do antigo regime. Não é de surpreender quando se observa o surgimento da tônica do orgulho pelo passado autoritário, uma vez que a forma com que os militares, o Legislativo e o Judiciário atuaram na defesa do status quo brasileiro configurou numa verdadeira amnésia de um período repleto de violações de direitos humanos.
A controvérsia é reforçada com a decisão da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 153, proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados perante o Supremo Tribunal Federal em 2008, que decidiu pela validade e recepção constitucional da Lei de Anistia. A propositura do processo teve como fundamento a existência de controvérsia judicial no dispositivo normativo que anistiou os crimes cometidos por agentes da ditadura, incluindo crimes de homicídio, tortura, desaparecimento forçado com ou sem ocultação de cadáver.
Entre os argumentos invocados pelos ministros, destaca-se o da prescrição da persecução penal, suscitado principalmente pelo Ministro Marco Aurélio, que impediria ações de responsabilização criminal de agentes em decorrência do lapso temporal de 29 (vinte e nove) anos entre a decisão na ADPF nº 153 e os crimes cometidos durante a ditadura, violando o limite máximo prescricional do Código Penal.
Além da prescritibilidade, outro argumento endossado pelos ministros se refere a uma possível insegurança jurídica como consequência do estabelecimento de uma imprescritibilidade no futuro para crimes cometidos no passado.
Desta forma, a decisão do Supremo Tribunal Federal, em 2010, que recepcionou a Lei de Anistia, sob a perspectiva de que os crimes cometidos durante a ditadura estariam todos prescritos, equivale a negar às vítimas a possibilidade de obter, perante o Judiciário, provimento jurisdicional acerca dos variados crimes dos quais foram vítimas. Além disso, é imprescindível observar a precedência do Direito Internacional dos Direitos Humanos, bem como o julgamento pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CtIDH), no Caso Gomes Lund.
São crimes contra a humanidade as graves violações de direitos humanos praticadas por meio de uma força política, sustentada pelo aparato estatal ou outra estrutura organizacional, contra a população civil, com o fito de controlá-la. Tais crimes têm o potencial de minar a própria qualificação humana de suas vítimas e, por essa natureza, entende-se que, quando praticados, há um prejuízo e uma degradação de toda a humanidade, o que torna o seu combate, investigação e punição interesses de todos.
O conceito de crimes contra a humanidade, enquanto uma categoria jurídica de direito internacional, surge a partir do desenvolvimento do próprio Direito Internacional dos Direitos Humanos no período pós-Segunda Guerra Mundial, com os julgamentos de Nuremberg e de Tóquio. A primeira definição é encontrada na Carta de Londres de 1945, que criou e delimitou a competência do Tribunal Militar Internacional.
Posteriormente, a compreensão acerca dos crimes contra a humanidade foi ganhando novos contornos normativos por meio de estatutos – como os dos Tribunais Penais Internacionais para a ex-Iugoslávia e para Ruanda –, tratados e da jurisprudência dos tribunais e cortes internacionais. Atualmente, é no Estatuto de Roma, ratificado pelo Brasil em 2002, que se encontra o conceito e a tipificação dos crimes contra a humanidade que servem usualmente como referência no cenário internacional. O Estatuto consolidou, uma vez mais, uma norma de jus cogens.
O artigo 7º do referido estatuto elenca uma série de atos que, quando cometidos em um contexto de ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil, em decorrência de uma política de Estado ou organizacional, se enquadram como crimes contra a humanidade.
Dentre esses, está o desaparecimento forçado, entendido como “a detenção, a prisão ou o sequestro de pessoas por um Estado ou uma organização política ou com a autorização, o apoio ou a concordância destes, seguidos de recusa a reconhecer tal estado de privação de liberdade ou a prestar qualquer informação sobre a situação ou localização dessas pessoas, com o propósito de lhes negar a proteção da lei por um prolongado período de tempo”.
Já em seu artigo 29, o Estatuto de Roma consagra a imprescritibilidade de tais crimes. O dispositivo, na verdade, apenas reconhece o que já era determinado pelo costume internacional. Isso porque os crimes contra a humanidade integram o âmbito das normas jus cogens, ou seja, são normas aceitas pela comunidade internacional, que possuem imperatividade e efeito erga omnes; não se sujeitam às regras de prescrição e anistias, nem podem ser derrogadas, senão por outra norma de igual natureza.
O caráter jus cogens dos crimes contra a humanidade vigora antes mesmo do período da ditadura militar brasileira e é entendimento consolidado da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Nesse sentido, a imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade, bem como a impossibilidade de se anistiá-los, é patente, e reconhecer isso é uma obrigação de todos os Estados.
É a partir desse raciocínio que, acertadamente, decidiu o Juiz Federal Sílvio César Arouck pela condenação do agente responsável pelo desaparecimento forçado de Edgar de Aquino. Além de não ser possível fundamentar a validade da Lei de Anistia com base na suposta prescritibilidade dos crimes, não pode uma lei de direito interno servir como óbice para o cumprimento das obrigações internacionais dessa ordem, às quais o Brasil está submetido.
Na seara cível, por exemplo, o dever de reparar as vítimas de crimes contra a humanidade não está sujeito à prescrição. É o que diz a Súmula n° 647 do STJ, ao dispor que são imprescritíveis as ações indenizatórias que pleiteiam reparação por danos morais e/ou materiais decorrentes de violações de direitos fundamentais ocorridas na ditadura.
A primeira condenação do Estado brasileiro no âmbito internacional em relação aos fatos ocorridos no regime militar é um exemplo do descumprimento dessas obrigações, bem como reforça quais são elas.
Em 24 de novembro de 2010, o Brasil foi condenado pela CtIDH pela detenção arbitrária, tortura e desaparecimento forçado de 70 pessoas, entre membros do Partido Comunista do Brasil e camponeses da região, com o intuito de erradicar a Guerrilha do Araguaia. O Estado também foi responsabilizado pela impunidade dos responsáveis e pela falta de acesso à justiça, à verdade e à informação decorrente da aplicação da Lei de Anistia, que impediu a realização de uma investigação penal com a finalidade de processar, julgar e punir as pessoas responsáveis.
Em sua sentença, a CtIDH afirmou que a obrigação de investigar e, se for o caso, julgar e punir os agentes da ditadura, adquire particular importância ante a gravidade dos crimes cometidos e a natureza dos direitos ofendidos, considerando que a proibição do desaparecimento forçado de pessoas e o correspondente dever de investigar e punir os responsáveis há muito alcançaram o caráter de jus cogens.
Nesse cenário, reafirmando sua jurisprudência nos casos Barrios Altos vs. Peru e Almonacid Arellano e outros vs. Chile, a CtIDH determinou que, dada sua manifesta incompatibilidade com a Convenção Americana de Direitos Humanos, as disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos carecem de efeitos jurídicos e não podem continuar a representar um obstáculo para a investigação dos fatos ocorridos na ditadura militar.
Importante destacar que a Corte Interamericana ressaltou que, ao julgar o caso Gomes Lund e outros vs. Brasil, o Tribunal internacional não pretendeu revisar a decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF nº 153, na qual se exerceu um controle de constitucionalidade entre a Lei de Anistia e a Constituição Federal de 1988. Diferentemente, na sentença da CtIDH, foi realizado um controle de convencionalidade, analisando a compatibilidade da Lei de Anistia com a Convenção Americana de Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário, com vigência no ordenamento jurídico brasileiro desde 25 de setembro de 1992.
Ainda que não seja possível assegurar, por enquanto, que a pena imposta à Carlinhos Metralha será efetivamente cumprida, em virtude das limitações oferecidas pela Lei de Anistia, a sua condenação possui grande significado para a Justiça de Transição brasileira. Afinal, é a primeira vez que se tem no Brasil – país que, diferentemente dos seus vizinhos latino-americanos, escolheu não punir criminalmente os agentes da ditadura – uma sentença condenatória em face de um crime contra a humanidade praticado durante o período.
As discussões acerca da responsabilização criminal dos perpetradores de violações do regime militar passam pela impunidade e o punitivismo. De fato, a ausência da responsabilização não pode ser considerada, por si só, culpada pela transição incompleta vivenciada pelo Brasil, vez que os pilares da memória e verdade, das reformas institucionais e da reparação possuem igual relevância para a concretização de uma justiça de transição.
Mas, por outro lado, a escolha pela manutenção dos entraves postos pela Lei de Anistia, sem que se tenha avanços no campo da responsabilização criminal, é sintomática de um país que não foi capaz de encarar verdadeiramente o seu passado autoritário, o qual respinga sobre as instituições e consciência nacional desde então e aparece cada vez mais no atual contexto de retrocesso democrático.
A sentença do caso Edgar de Aquino, portanto, pode representar o prelúdio de uma mudança de entendimento do judiciário acerca do tema. Trata-se de um sopro de esperança de um futuro mais democrático, sem perder de vista a necessidade de se buscar a efetividade de todos os instrumentos da justiça de transição, dentro e fora do âmbito penal.
Por Gabriel Pereira Novais [1], Luísa Mouta Cunha [2] e Júlia Melo Fonseca Ribeiro [3].
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[1] Mestrando em Direito na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); Pesquisador associado ao Centro de Estudos sobre Justiça de Transição (CJT/UFMG). Membro do Grupo de Extensão e Pesquisa em Direito, Estado e Relações Raciais (ALAFIA/UFMG).
[2] Graduanda em Direito na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Extensionista do Centro de Estudos sobre Justiça de Transição (CJT/UFMG).
[3] Graduanda em Direito na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Extensionista do Centro de Estudos sobre Justiça de Transição (CJT/UFMG).