Borba Gato e as disputas pelas identidades e memórias do país

agosto 4, 2021

Ataques à Diversidade . Blog Democratizando . Brasil

Era sábado, dia 24 de julho de 2021, quando um grupo de jovens vestidos de preto chegou em um caminhão e começaram a jogar pneus, derramar líquido inflamável  em uma estátua que fica no bairro de Santo Amaro, zona sul de São Paulo, e atearam fogo. Imediatamente, os meios de comunicação noticiaram que a estátua de Borba Gato havia sido incendiada. A autoria do ato foi reivindicada pelo grupo Revolução Periférica, que postou imagens da ação nas redes sociais. Nessas mesmas redes sociais emergiu um debate intenso sobre a legitimidade da ação. Alguns eram contra e outros a favor. Esse não é um fato isolado no Brasil, muito menos no mundo, sobretudo no que diz respeito a ligação destes monumentos com a escravidão moderna.

No ano de 2015, na África do Sul, estudantes da Universidade da Cidade do Cabo removeram a estátua do imperialista britânico Cecil Rhodes. Segundo os estudantes, o monumento significava a presença do racismo imperando na instituição e no país. Em 2017, na cidade Charlottesville, Virginia, Estados Unidos, houve protestos e confrontos contra a retirada da estátua do general confederado Robert E. Lee. Ainda no Estados Unidos, durante as manifestações contra o assassinato de George Floyd, as ações a favor da retirada dos monumentos que tinham ligação com o passado escravista do país se intensificaram e reverberaram pelo mundo.

Na Inglaterra, em junho de 2020, manifestantes contra o racismo derrubaram a estátua do traficante de escravos Edward Colston, na cidade de Bristol. No mesmo período, na Bélgica, a estátua do colonizador Leopoldo II, que fica na cidade de Antuérpia, foi alvo de ações antirracistas. Ainda em 2020, de acordo com o Conselho de Monumentos Nacionais no Chile, mais de 300 monumentos foram alvos dos manifestantes durante os protestos por mudanças políticas no país. Da mesma forma, a estátua de Cristóvão Colombo também foi derrubada durante os protestos na Colômbia, em junho de 2021. E agora, em julho do mesmo ano, manifestantes durante os protestos contra o presidente Jair Bolsonaro incendiaram a estátua do bandeirante Manoel Borba Gato.

Todos esses fatos têm algo em comum: a disputa em torno da memória, ou seja, como os fatos devem ser lembrados no presente que os rememora. Falar em memória é também falar em pertencimento e constituição de identidades. O sociológico e historiador Michael Pollak afirma que a memória, principalmente a memória coletiva, tem como função estabelecer espaços de pertencimento ao mesmo tempo que traça limites para esse pertencimento.

É importante chamar a atenção para o fato de que, em uma sociedade plural e diversa, falar em memória coletiva não é o mesmo que falar em unicidade em torno dela. A construção de uma memória coletiva passa pelo reconhecimento da alteridade, isso vai gerar uma tensão em torno da disputa pelas memórias existentes, que para não ser imposta como violência é o tempo todo negociada. Em uma sociedade complexa esses espaços de identidade, de pertencimento, estão em constantes atritos. Esse contexto de disputas, Pollak denomina de batalhas pela memória.

Para melhor elucidar essa teoria, segue o exemplo. Provavelmente se você tem mais de trinta anos deve ter estudado nas aulas de história que os bandeirantes, com seus trajes tipicamente europeus nas florestas brasileiras, eram pessoas que desbravaram e traçaram heroicamente as fronteiras do país. É necessário se ater ao fato de que toda narrativa tem uma origem. E com os bandeirantes não é diferente.

Estátua de Borba Gato em Chamas, em Santo Amaro, Zona Sul de São Paulo / Divulgação

Em entrevista ao podcast Café da Manhã, da Folha de São Paulo, a historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz afirma que essa imagem do bandeirante, ou sertanista, nasce em um contexto muito específico da história brasileira, que data o final do império início da república, com a criação do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo – IHGSP. Na busca pela construção de uma identidade para a cidade de São Paulo e para os paulistanos, o Instituto se apropriou da imagem dos bandeirantes do século XVIII, do contexto da mineração, fez uma releitura a partir do século XX e os transformou em sinônimo de coragem, espírito empreendedor e produtor de riqueza, características essas que seriam inerentes ao povo paulista.

Voltando ao nosso exemplo, inicialmente, passar essa identidade como símbolo do estado de São Paulo e do povo paulistano não seria um problema. Entretanto, ao transmitir essa imagem romântica do desbravador corajoso, preocupado em estabelecer o progresso do país, tal pretensão joga para a clandestinidade outras histórias e memórias que disputavam a identidade do paulistano.

Nesse caso, essa narrativa oculta o fato de que os bandeirantes, além de desbravadores, diga-se de passagem, somente conseguiram esse feito graças ao conhecimento territorial dos povos originários, também eram mercenários que se enriqueceram pelo aprisionamento e captura de negros e indígenas. Para isso, se valiam dos métodos de coerção mais brutais existentes. Dessa forma, ao disputar a construção da identidade e a memória do povo paulistano, o Instituto Geográfico de São Paulo ocultava aqueles fatos que não interessavam para a constituição da identidade paulista. Em outros termos, o bandeirante desbravador e símbolo do progresso possuía uma de suas faces ocultas: a da brutalidade e da violência. Algo bem característico da modernidade colonial. Esse exemplo serve para apresentar a tensão existente entre a pretensa memória oficial e as memórias relegadas à clandestinidade, as quais disputam a compreensão da sociedade.

Entretanto, para que essa memória oficial seja perene ela depende daquilo que Pollak chama de enquadramento de memória. O trabalho de enquadramento de memória toma como ponto de partida elementos fornecidos pela história, bem como ter que submeter o pretenso passado a constantes questionamentos do presente e do futuro, com requisito de permanência. Esse processo é produzido por diversos atores, por exemplo: historiadores, artistas, canais de televisão, de youtube e mídias sociais, que podem se valer de diversas fontes materiais, tais como: livros, esculturas, prédios, museus e estátuas que expressem em suas estruturas a leitura da memória pretendida. No exemplo dos monumentos, muitas das vezes, os enxergamos como parte do ambiente, sem mesmo nos questionarmos sobre sua origem.

É importante lembrar que essa perenidade da memória não é absoluta, pois, como dito acima, se esse trabalho de enquadramento da memória não levar a sério a coerência sucessiva de justificação de sua existência, a relação de alteridade, aceitação e negociação se tornam imposições violentas, o que acabam por apresentar fraturas que expõem as incoerências da pretensa memória oficial. É nesse momento que as memórias clandestinas ou subterrâneas, aquelas ocultadas pela narrativa oficial, emergem para demonstrar as fragilidades desta. É por meio dessas fraturas que essas memórias subterrâneas vêm exigir reparação política, social e uma leitura crítica do passado.

Diante dessa breve exposição teórica, podemos trazer para a discussão o fato de que monumentos não são apenas estruturas incorporadas ao ambiente, eles carregam no presente as glórias e as violências do passado. Mesmo em tempos de aparente normalidade e harmonia social, monumentos, como os que homenageiam escravistas e torturadores, estão fixos no presente para demonstrar que aquele passado que se pretende despotencializar, permanece vivo com o vigor do material que os constrói. Um levantamento feito nos Estados Unidos demonstra que o número de estátuas em homenagem a personagens confederados aumentava justamente nos períodos de maiores ganhos para as minorias políticas do país. Ou seja, o passado se fazendo presente diante dos avanços progressistas de povos que tiveram suas memórias sufocadas.

Apenas a título de curiosidade, em decorrência da discussão sobre a derrubada das estátuas em torno do mundo, o Departamento de Patrimônio Histórico de São Paulo, fez um levantamento e constatou que na cidade existem entorno de 41 obras controversas, que homenageiam colonizadores, escravocratas e líderes da ditadura militar no país. Todas elas disputando no presente a memória do passado.

Tanto é assim que sete dias após a ação contra a estátua do bandeirante, uma homenagem à Marielle Franco, vereadora negra executada por grupos de extermínio no Rio de Janeiro, e símbolo da disputa de identidades esquecidas, foi manchada com tinta vermelha, teve um desenho de uma genitália masculina em sua boca, com os dizeres: viva Borba Gato. Quem praticou esse ato provavelmente tem saudades do tempo em que o patriarcado branco e escravista reinava.

Ainda que a ação de depredar monumentos públicos seja considerada legalmente como vandalismo, a história não espera um discurso qualificado e iluminista para que seja empurrada. Ela é feita a todos os minutos, por qualificados, por desqualificados, por ricos, por pobres, por instituições ou pela sociedade civil e, principalmente, por aquelas pessoas, por exemplo, que tiveram suas identidades e memórias suplantadas por esses símbolos que para muitos são neutros e, em alguns casos, servem tão somente como ponto de referência na cidade.

Espanta muito o argumento de que os bandeirantes “eram pessoas de seu tempo”, tempo  da barbárie e da brutalidade. Se esse pretenso argumento for levado a sério, não mais poderemos lançar olhares críticos sobre a escravidão, sobre o colonialismo ou qualquer tipo de ação questionada. O que ele faz é sustentar o perigoso caminho da história única, que desconsidera as inúmeras e diversas formas de resistência aos sistemas de opressão existentes. Sem contar que no período dos bandeirantes caçar indígenas era considerado crime, portanto eram “pessoas de seu tempo” que também cometeram crimes.

Talvez o leitor possa se questionar se não haveria outro mecanismo mais democrático para questionar a presença desses símbolos no país. Há. Propostas não faltam, as mais conhecidas são: levá-los para os museus; contrapô-los com outros monumentos que mostre o outro lado entre tantos outros. Um exemplo: depois que a estátua de Edward Colston foi arrastada pelas ruas Bristol e jogada no rio da cidade, ela foi levada para o museu e a administração local fará uma consulta pública para ver qual o fim ela deve seguir.

Entretanto, muitas das vezes pessoas que se veem vilipendiadas por esses símbolos não têm acesso a esses canais e preferem pagar o preço e o risco da ilegalidade. Como afirma o professor Vladimir Safatle, diante de tamanha violência acumulada ao longo do tempo, as pessoas vítimas desses símbolos exercem a autodefesa ao questionarem as existências desses monumentos. É de se perguntar se os indígenas que vivem no Pico do Jaraguá, um dos primeiros lugares explorados pelos bandeirantes na cidade de São Paulo, se sentem bem com a memória onde seus algozes são heróis nacionais. Da mesma forma, é importante questionar se as pessoas negras se sentem bem com monumentos que exaltam escravistas, assim como se as vítimas da ditadura militar ficam à vontade com nome de ruas que homenageiam torturadores.

Sendo ilegal ou legitima, a ação contra a estátua do bandeirante conseguiu ascender o debate nacional sobre esses monumentos. Certamente, o questionamento feito pelo grupo Revolução Periférica em um de seus vídeos atiçou a atenção de quem o assistiu para tentar responder: você sabe quem foi Borba Gato? Essa centelha de curiosidade é suficiente para ascender as disputas que se tem em torno da memória do país.

Por Deivide Júlio Ribeiro [1].

Leia mais em:

MOURA, Clovis. Rebeliões da senzala: quilombos, insurreições, guerilhas. 4. ed. Porto Alegre: Marcado Aberto, 1988.

POLLAK, Michael. Memória e identidade social. In. Estudos históricos. Rio de Janeiro, v. 5,n., 10, 1992, p. 200-212.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

SCHWARCZ Lilia Moritz; Starling heloisa. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015


[1] Mestre e Doutorando em Direito pela Faculdade de Direito da UFMG, um dos coordenadores do Alafia – Grupo de Extensão e Pesquisa em Direito, Estado e Relações étnico raciais da Faculdade de Direito e Ciências do Estado da UFMG.