setembro 25, 2019
Para proteger a família brasileira contra a “ideologia de gênero”, o Presidente Jair Bolsonaro tem desempenhado eficiente projeto de ataque, censura e desmonte à Agência Nacional de Cinema (Ancine). Sob o mesmo pretexto, o prefeito do Rio de Janeiro ordenou que Fiscais da Secretaria Municipal recolhessem livro considerado “impróprio para o público infantil” na Bienal Internacional do Livro 2019.
Como se não bastasse o ataque à cultura, a educação também não foi poupada: o governo de São Paulo ordenou a retirada de material escolar que abordava o tema da diversidade sexual. Estes acontecimentos remontam a tempos sombrios e não deixam dúvidas: “É preciso reconhecer a censura à temática LGBTQI, identificar os prejuízos aos direitos das minorias sexuais e, principalmente, resistir.”
A cruzada contra a “ideologia de gênero” (modo distorcido de interpretar a chamada identidade de gênero) já aparecia na campanha presidencial de 2018. Sob o pretexto de proteção à família tradicional, o presidente eleito Jair Bolsonaro promoveu uma campanha marcada pelo uso de bordões clamando pela proteção a valores conservadores.
A ANCINE é apenas um dos órgãos que sofre com a investida conservadora do presidente – que chegou a afirmar que pretende extinguir a Agência acaso não consiga colocar algum filtro cultural. A medida viola um direito fundamental presente na Constituição de 1988, em seu art. 5º, que determina ser “livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”.
Em outro momento, afirmou que iria “respeitar as crianças em sala de aula”, chegando a determinar recentemente que o ministro da Educação vetasse as discussões sobre gênero nas escolas públicas.
Alinhado ao conservadorismo do governo federal, a medida tomada pelo governador João Dória de censurar apostilas parece desarrazoada na medida em que priva os alunos de compreenderem conceitos como sexo biológico, identidade de gênero e orientação sexual, além de aprenderem sobre gravidez e infecções sexualmente transmissíveis.
Trais medidas estão em desacordo com a Constituição de 1988 que estabelece, em seu artigo 6º, a educação como direito social. O Ministério Público de São Paulo passou a apurar uma possível violação do direito à educação por parte do governo do estado de SP, uma vez que considera frágil a justificativa de que seria indevida a abordagem do tema da identidade de gênero.
Ainda, o MP questiona sobre os fundamentos jurídicos que embasaram a ação, assim como se os docentes haviam sido consultados sobre a necessidade e adequabilidade da conduta.
Mas a principal característica das medidas acima é a de atacar as minorias sexuais e o Universo LGBTQI (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Transgêneros, Queer, Intersexo e Assexual) afetando, portanto, o direito à pluralidade. O pluralismo é princípio estruturante da ordem jurídica e impõe ao Estado a obrigação de não discriminar e de atuar para que as opiniões e os modos de vida possam coexistir em harmonia.
Nesse sentido, os comportamentos não dominantes das minorias sexuais não devem ser suprimidos, os indivíduos devem ser reconhecidos e respeitados em seu direito fundamental à diferença. E não há melhor forma de que isso possa se concretizar senão pela atuação do Estado.
As respostas institucionais dão conta de que há uma luz no fim do túnel: a Associação do servidores da Ancine divulgou uma carta aberta defendendo a importância da Agência, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro concedeu uma liminar impedindo a prefeitura de apreender livros na Bienal ou de cassar o alvará do evento. Ainda, o presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffolli, proibiu a censura de livros no Rio de Janeiro afirmando que “O regime democrático pressupõe um ambiente de livre trânsito de ideias”.
A sociedade civil parece disposta a enfrentar a censura: o livro objeto de censura por Crivella se esgotou em pouco tempo na Bienal em 2019.
Os atos dos Governos Federal, Estadual e Municipal, hoje chefiados por partidos e expoentes políticos conservadores, nos remetem diretamente à ditadura militar brasileira.
No período que teve início em 1964, a defesa do Estado e a defesa da tradição e da família se fundiram num único discurso autoritário, o que levou à censura de ideias e de das manifestações vistas como não-tradicionais ou não-conservadoras. As minorias sexuais foram reprimidas pelo slogan “tradição, família e propriedade”.
Esse slogan compunha um ideal muito mais amplo do regime, do qual faziam parte o apelo à ordem, apelo à tradição e o combate a tudo que fosse uma ameaça a esses fatores: gays, lésbicas, bissexuais, transsexuais, dentre outros. (GREEN; QUINALHA, 2014, p. 276)
Durante a ditadura civil-militar brasileira, a comunidade LTGBTQI foi duramente atingida por “expurgos de cargos, perseguição a travestis – enquadradas nos crimes de vadiagem ou perturbação da ordem pública – censura à imprensa, artes e outras formas de expressão que simbolizavam as sexualidades” (GREEN; QUINALHA, 2014, p. 248-249).
Os mecanismos recentes e ditatoriais de neutralização das diferenças podem ser pensados à luz da “dinâmica autoritária”, de Karen Stenner, que diz respeito à interação entre uma predisposição ao autoritarismo e condições de ameaças normativa. Para a autora, o autoritário é aquele que rejeita a diferença/pluralidade, busca maior unidade e consenso.
Dentro dessa dinâmica do nós vs eles, o autoritário está disposto a aceitar a intromissão do governo na vida privada – até mesmo o uso de coerção – especialmente se ela reforçar suas próprias noções de moral, política e raça.
Por fim, os episódios de censura relatados nos permitem refletir sobre uma dinâmica autoritária, uma vez que os eventos nos remetem a um momento de repressão que não é inédito. A ofensiva conservadora com a tentativa de impor um conceito único de família e sexualidade, além de evitar a contestação e criatividade – em suma, buscando neutralizar as diferenças mesmo que à custo de garantias fundamentais – deve ser combatida pelas instituições democráticas e por toda a sociedade.
Apesar da censura, exílio e repressão durante a ditadura civil-militar brasileira, as artes foram potente espaço de resistência e contestação ao regime. De igual modo, as respostas da população civil e institucionais demonstram que já não há mais espaço para a supressão da diversidade.
Por Mariana Tormin Tanos Lopes [1] e Nathalia Brito Carvalho [2]
Leia mais nos links abaixo:
Sobre a “dinâmica autoritária” – https://www.karenstenner.com/
Recolhimento de HQ viola o Estado de Direito – https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2019/09/recolhimento-de-hq-viola-o-estado-de-direito.shtml
[1] Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFMG. Pesquisadora do Centro de Estudos sobre Justiça de Transição (CJT/UFMG).
[2] Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFMG. Pesquisadora do Centro de Estudos sobre Justiça de Transição (CJT/UFMG).