setembro 9, 2019
Nota dos editores: O post de hoje é parte da nossa série de posts convidados. Nestas oportunidades, o Democratizando abre espaço para discussões complementares ao nosso foco – justiça de transição e declínio da democracia – para ouvir especialistas à respeito de temas que contribuem para uma leitura mais abrangente do cenário político brasileiro. Boa leitura!
Emilio Meyer e Mariana Rezende
Nos últimos meses, um vertiginoso crescimento das queimadas na Floresta Amazônica tem chocado o mundo. Segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), o número de focos de queimada entre janeiro e agosto é o maior em sete anos. O Instituto concluiu que houve um aumento de 82%, em relação ao mesmo período de 2018. A comparação dos números referentes a desmatamento no mês de julho de 2018 e de 2019 também revela uma realidade estarrecedora: um aumento de ocorrências da prática de 278%.
Alguns dados podem ajudar a explicar esse crescimento. O discurso antiambientalista do presidente Jair Bolsonaro, tão presente em sua campanha presidencial, saiu do papel, materializando-se em números alarmantes. A contra-ideologia do presidente, defendida abertamente durante a campanha, levou a uma série de ações e omissões em relação à precarização da política ambiental brasileira – considerada há anos dentre as mais avançadas do mundo.
Entre janeiro e agosto, o número de multas aplicadas pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) caiu em 29%. Em março, Bolsonaro determinou um contingenciamento de R$ 187 milhões no Ministério do Meio Ambiente. Esse contingenciamento levou a um corte de 38% nas verbas para fiscalização e 24% nas de combate a incêndios florestais. Em abril, as operações de fiscalização caíram 70% na Amazônia. Apesar desses dados preocupantes, no mês seguinte, o contingenciamento foi ampliado, chegando a R$ 244 milhões.
Enquanto as ações e omissões do presidente em relação ao meio ambiente podem ser consideradas violações ao disposto na Lei do Impeachment (Lei 1.079/1950), como parece defender o Prof. Conrado Hubner, faremos uma reflexão que se relaciona apenas às ações de desmonte descritas acima – ações que causam danos ambientais irreparáveis – e a possibilidade de caracterizá-las como crimes contra a humanidade.
Antes de avançarmos à questão fundamental deste artigo – se as condutas praticadas pelo presidente são englobadas nos atos considerados crimes contra a humanidade – parece relevante retroceder por um momento e buscar entender o que são crimes contra a humanidade.
Nesse sentido, buscamos suporte no entendimento do Prof. David Luban em seu paradigmático artigo sobre crimes contra a humanidade. O professor defende que o conceito engloba, simultaneamente, pelo menos duas ofensas:
Nos parece, com base na compreensão citada, que, de fato, as condutas praticadas pelo presidente se adequam ao conceito: a iniciar pelas falas do presidente contra o meio-ambiente (e o Ministério do Meio Ambiente) e em favor do desmatamento, passando pela negação de dados científicos acerca da situação da Floresta Amazônica e, posteriormente, o contingenciamento de verbas para instituições de implementação e fiscalização de políticas ambientais, em meio ao contexto atual.
De tal forma, as ações praticadas pelo presidente e seu governo são ofensas que:
Assim, uma vez que as condutas do presidente parecem se adequar aos fundamentos do conceito, nos parece necessário questionar se há na norma algum tipo penal que engloba, de forma específica, as condutas citadas. Para tanto, recorremos ao texto do Art. 7 (1) do Estatuto de Roma (dos crimes contra a humanidade).
Enquanto os atos praticados por Bolsonaro não nos parecem violações (diretas) ao previsto nas alíneas (a) a (j), é possível estabelecer uma relação entre os atos praticados pelo presidente e o disposto no Art. 7(1)(k), o qual estabelece serem considerados crimes contra a humanidade:
“Outros atos desumanos de caráter semelhante [aos demais atos sobre os quais o Artigo faz referência], que causem intencionalmente grande sofrimento, ou afetem gravemente a integridade física ou a saúde física ou mental.”
Para que uma conduta se encaixe no previsto pelo Art. 7(1)(k), ela deve se adequar aos seguintes elementos cumulativos:
Nos parece que todos os elementos estão presentes nas condutas do presidente:
Parece-nos, frente a todos os pontos levantados, haver tipicidade. Ou seja, parece que, em um exame inicial, os elementos do crime estabelecido pelo Art. 7(1)(c) estão presentes nas condutas praticadas por Bolsonaro, o que nos leva a crer que ao menos uma denúncia seja cabível.
Nesse sentido, em 2016, a promotoria do Tribunal Penal Internacional publicou um documento sinalizando para um interesse na ampliação de sua competência para denunciar crimes ambientais como crimes contra humanidade. Vale ressaltar, ainda, que é cada vez mais comum que renomados professores de direito internacional defendam que crimes de natureza ambiental estejam inscritos nos contornos de crimes contra a humanidade – inclusive para além dos ‘atos desumanos’ do qual fala o Art. 7 (1)(c) -, crimes de guerra e até mesmo do crime de genocídio.
Compreendemos que, até o momento, procedimentos jurídicos decidindo pela condenação por crimes contra a humanidade, em razão de crimes ambientais, ainda são incipientes, embora tenha a corte avançado na direção de aceitar denúncias dessa natureza. Dessa forma, acreditamos que essas iniciativas não sejam de todo legalmente inapropriadas. A razão de nosso dissenso se refere ao fato de que os elementos do tipo estabelecido pelo Art. 7(1)(k) englobam condutas similares e com efeitos similares àquelas praticadas pelo presidente.
Em razão da gravidade da situação – e das consequências devastadores e irreparáveis que se ampliam -, parece-nos razoável que todas as medidas sejam tomadas visando a interrupção dessa catástrofe. Portanto, para além de denúncias à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, e órgãos das Nações Unidas, denunciar as condutas praticadas pelo presidente ao Tribunal Penal Internacional, apesar de um tanto quanto quixotesco, parece-nos não somente uma opção legalmente viável, mas também uma empreitada louvável.
Por Felipe Guimarães Assis Tirado [1], Monique Rocha Salerno Lisboa [2], Ana Clara Abrantes Simões [3], João Marcelo da Silva Elias [4].
Veja mais em:
“Juristas preparam denúncia contra Bolsonaro por ecocídio” – https://www.dw.com/pt-br/juristas-preparam-den%C3%BAncia-contra-bolsonaro-por-ecoc%C3%ADdio/a-50172603
“Environmental crimes at the International Criminal Court – experts examine limits and opportunities for new ICC policy on international accountability for environmental crimes” [EN] – https://www.conectas.org/en/news/crimes-ambientais-no-tpi
“Decisões da gestão Bolsonaro fragilizam controle ambiental” – https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2019/08/decisoes-da-gestao-bolsonaro-fragilizam-controle-ambiental.shtml
“Desfaça tudo essas reservas” – https://apublica.org/2019/04/desfaca-tudo-essas-reservas-diz-produtora-a-secretario-em-reuniao-de-fazendeiros-do-para-com-governo-federal/?fbclid=IwAR3lA4IR8CiaO7Xrkt3bWU1kCOY2BJLzWMTbsA0pJYCJ8svqkuL5EJkpuJM
1 Advogado, Mestrando em Direito Transnacional pelo King’s College London, Mestre e Graduado em Direito pela UFMG.