Militarização da educação: particularidades e inconstitucionalidades

outubro 9, 2019

Blog Democratizando

No dia 05 de setembro, o governo federal lançou o Programa Nacional de Escolas Cívico-Militares (PECIM), com a meta de implementar 216 escolas no modelo até 2023. O modelo prevê instituições educacionais não militares, mas com uma equipe de militares das Forças Armadas, da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros, da reserva e da ativa,  no papel de tutores e gestores.

Ao todo, 16 estados e o Distrito Federal aderiram ao programa – atualmente, Minas Gerais e Goiás concentram o maior número de escolas no modelo, anteriores ao programa. Entre melhorias nos índices educacionais e questionamentos por cobranças, o modelo sofre com críticas de especialistas em educação e questionamentos pelo Ministério Público. Mas como esse programa se insere no Governo Bolsonaro? Quais seriam os problemas do modelo?

O que são escolas cívico-militares?

O projeto do governo Bolsonaro é transformar 216 escolas públicas do país para o modelo  “cívico-militar”, em detrimento da forma tradicional adotada na maioria das unidades de ensino do Brasil. Esse modelo consiste, basicamente, em delegar a área administrativa aos militares, que ficam responsáveis também por impor regras de disciplina, o que implica no enxerto da ideia de hierarquia típica da área militar aos estudantes.

Nessa conjuntura, a gestão e introdução do modelo militarizado de educação nas escolas ficará a cargo de uma parceria entre as Secretarias de Educação e das Secretarias de Segurança Pública, dos municípios e estados que adotarem o sistema e o Ministério da Educação e da Defesa, do governo federal.  Há uma forte retórica de que o modelo de Escolas Cívico-Militares (Ecim) ajude a reduzir dos índices de violência nas escolas públicas regulares, havendo preferência para instalar o programa em localidades de alta vulnerabilidade social, e até mesmo de modo a coibir a violência da região. Nos colégios que já empregam o modelo, há questionamentos sobre o pagamento de contribuições, não obrigatórias, pelos pais às escolas e ainda sobre a o preço das fardas – uniforme obrigatório –  que já promoveria uma seleção entre aqueles podem arcar com citados custos. Os bons resultados alcançados em  exames nacionais pelos colégios, entretanto, é um ponto de apoio na defesa do modelo.

A discussão também alcança os colégios militares, tomados como modelo para as Ecim (artigo 3º, VII, Decreto nº 10.004). Ao contrário do propagandeado pelo governo, a melhor colocação das escolas militares nos exames nacionais não se deve apenas ao fato de os estudantes estarem submetidos a um sistema pedagógico repressivo e militarizado, sendo necessário considerar que os gastos por aluno nas escolas militares, que é de R$ 19.000 por ano, são quase três vezes maiores do que no ensino público em geral. Além disso, as escolas militares fazem processos de seleção de alunos, tendo estudantes   de padrão socioeconômico considerado “muito alto” pelo Ministério da Educação, em razão dos resultados das seleções. Exigências feitas pelas escolas, que implicam em gastos com a uniformização do aluno e uma contribuição mensal também funcionam como filtros que excluem estudantes mais socialmente vulneráveis. 

As inconstitucionalidades das escolas cívico-militares

O projeto das escolas cívico-militares não é o primeiro ataque do governo Bolsonaro às bases pluralistas de Constituição de 1988 e da democracia brasileira. As censuras a manifestações artísticas e culturais com temática LGBTIQ, por exemplo, já acontecem a nível federal e se repetem estadual e municipalmente. O decreto nº 10.004, que instituiu o Programa Nacional de Escolas Cívico-militares (PECIM) limita-se a afirmar, de maneira genérica, que entre os princípios do PECIM está o “fortalecimento de valores humanos e cívicos”. Entretanto, ao estudar os regimentos de alguns colégios que adotaram o modelo proposto, é possível reconhecer determinações potencialmente violadoras da liberdade de expressão dos e das estudantes e de caráter anti-pluralista, por determinarem um padrão estético específico a ser seguido pelos alunos.

No Colégio Ayrton Senna, em Goiânia, um exemplo de transgressão prevista no regulamento é a restrição do uso de penteados e cortes de cabelos pelos alunos e alunas. Enquanto os meninos devem usar apenas o chamado “meio cabeleira”, que consiste no uso de máquina nº 02 na laterais e nº 04 no topo, as meninas  de cabelo médio ou longo devem usar trança, rabo de cavalo ou coque e “[e]m quaisquer ocasiões os cabelos deverão estar arrumados sempre mantidos baixos, de forma que não se apresentem rebeldes, evitando pontas soltas ou mechas caídas, bem como armações exageradas e indiscretas. Se necessário usarão gel ou outro produto para sanar o problema em questão”.

Tal previsão, entretanto, é potencialmente discriminatória para alunos e alunas que tenham cabelos crespos, tomando como padrão estético características de cabelos lisos, associados à branquitude. Não à toa, mulheres crespas foram discriminadas por regulamentos similares, tratadas como transgressoras, forçadas a aderir a um padrão de beleza, por meio do alisamento e mesmo ameaçadas de punição por usar cabelos afro. 

No Colégio da Polícia Militar do Estado de Goiás, o regimento também prevê uma série de “transgressões” ligadas à aparência e ao comportamento dos e das estudantes, inclusive fora do colégio, como:

Como se nota, são recorrentes termos abertos, cuja interpretação abre caminho para a censura dos alunos e das alunas e impede a livre expressão de suas individualidades.  Essa situação levou o MPF/BA a questionar a constitucionalidade da proposta, conforme aplicada no estado, dado que são “impostos aos alunos e alunas padrões estético e de comportamento baseados na cultura militar, sem qualquer relação ou potencialidade para a melhoria do ensino”, além do fato de que “atos decorrentes do exercício da liberdade de expressão são considerados como transgressões disciplinares”. Por fim, entende-se que “a repressão ao dissenso afeta não apenas os indivíduos diretamente atingidos, mas toda a comunidade escolar e a sociedade envolvente, que são privadas do pluralismo de opiniões e da liberdade de crítica, que identifica as sociedades democráticas e permite o controle das instituições e dos agentes do estado.”

Há, ademais, alegações de  inconstitucionalidade da proposta de preenchimento das vagas de gestão por militares por meio de processo seletivo simplificado, já que o artigo 37, CR/88 prevê que a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público, configurando desvio de função destinar a policiais, bombeiros e militares das Forças Armadas atribuições legalmente destinadas aos profissionais da Educação. Ressalta-se, também, que o artigo 206, V, também da Constituição prevê que os profissionais da educação entrarão na carreira exclusivamente por concurso público de provas e títulos, sendo o Decreto nº 10.004 incompatível com essa previsão.

Logo, considerando que a República Federativa do Brasil tem como fundamentos a cidadania, a dignidade da pessoa humana e o pluralismo político (artigo 1º, II, III e V, da Constituição Federal) e que o princípio da dignidade da pessoa humana garante a cada indivíduo o direito de exercer sua autonomia, conforme seus projetos e visões de mundo, o projeto de militarização das escolas se mostra uma ação inconstitucional, por não respeitar preceitos básicos como o ensino público gratuito, bem como por menosprezar características e a diversidade das diferentes culturas abarcadas pela rede educacional brasileira em sua pluralidade, de forma a padronizar a sociedade por meio de um ensino autoritário fundamentado em uma visão única.

A proposta para a educação de Bolsonaro

Já  durante a campanha presidencial de 2018 o então candidato Jair Bolsonaro propunha o modelo de militarização das escolas como a única maneira de solucionar os problemas estruturais enfrentados pelo sistema educacional brasileiro. A educação, e uma suposta manipulação ideológica que deveria ser combatida no campo, foi uma das pautas centrais da campanha de Bolsonaro. Por meio de ameaças a professores por defensores do “Escola Sem Partido”, camapanhas de difamação do patrono da educação no Brasil, Paulo Freire, o reforço de teorias conspiratórias de doutrinação nas escolas, como o inventado “kit gay”, o presidenciável trouxe para o centro do debate um ataque ao pluralismo na educação.

Assim, da mesma forma em que outras áreas básicas como a saúde, a segurança pública e a economia, a educação brasileira vem sendo tratada à base de de soluções  cosméticas e sem lastro em evidências para solucionar a violência e a precariedade nas escolas públicas brasileiras. Essas soluções são um reflexo da política anti-intelectualista em voga que ignora o valor da ciência em detrimento de uma moral conservadora e autoritária, e deve-se perguntar se  a militarização do ensino público básico pode ser vista como mais um capítulo da desmobilização do pensamento crítico na educação brasileira. 

Lado outro, ressalta-se que o ensino militarizado, mesmo que oneroso aos cofres públicos, é um investimento de grande valia para o governo atual, já que é, simultaneamente, um projeto constitutivo de disseminação de ideais socialmente conservadores e também autoritários. Nessa linha, o desmonte de uma educação pública, com, por exemplo, os contingenciamentos sofrido por colégios de institutos federais – que têm resultados educacionais melhores, sem a hierarquia militar – deve ser lida dentro do contexto de fortalecimento de modelos militarizados, abrindo caminho para que esse modelo pareça superior às demais, angariando aceitação popular pela qualidade de ensino apresentada em avaliações nacionais e consequente implantação baseada na legitimidade da vontade dos cidadãos. 

Esse modelo militarizado de escolas e suas práticas autoritárias traz ao Brasil democrático lembranças da Ditadura Militar que vigorou no Brasil de 1964 a 1985. Como exemplo, tem-se que foi nesse período em que as escolas passaram a ter vidros nas portas das salas de aula a fim de trazer uma ideia de constante vigilância e medo das punições causadas pela “indisciplina”. Assim como nesse momento, o plano de militarização das escolas adota a mesma estratégia: a de disciplina pelo medo e pela coerção. 

Cabe rememorar que a marca do autoritarismo é a rejeição de pluralidade e da diversidade, tratadas como ameaças, em favor de ordem, a ser mantida inclusive pelo uso da força. Um projeto de educação que privilegia a obediência e pune a autonomia deve, portanto, ser lido com a devida crítica. Assim, é possível notar que o autoritarismo que se instala nessas instituições, fantasiado de disciplina, se apresenta como base para a construção de uma realidade pautada no medo, na dissolução de direitos e na demonização da democracia no ensino público. 

Por Mariana Rezende [1], Bruno Braga [2] e Thaís Garcia [3]

Leia mais em:  

Educação: enunciado considera que programa de escolas cívico-militares fere os princípios da reserva legal e da gestão democrática do ensino público – http://www.mpf.mp.br/pgr/noticias-pgr/educacao-enunciado-considera-que-programa-de-escolas-civico-militares-fere-os-principios-da-reserva-legal-e-da-gestao-democratica-do-ensino-publico

Diferencial de desempenho das escolas militares: bons alunos ou boa escola? –  https://www.bnb.gov.br/documents/160445/960917/DIFERENCIAL_DE_DESEMPENHO_DAS_ESCOLAS_MILITARES.pdf/7ae9ef81-9687-46cb-b501-766ccef1cba2

Estudantes de colégios militares custam três vezes mais ao País – https://politica.estadao.com.br/noticias/eleicoes,estudantes-de-colegio-militar-custam-tres-vezes-mais-ao-pais,70002473230

A militarização das escolas públicas – https://diplomatique.org.br/a-militarizacao-das-escolas-publicas/


[1] Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFMG. Bolsista CAPES. Pesquisadora do Centro de Estudos sobre Justiça de Transição (CJT/UFMG).

[2] Graduando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Extensionista do Centro de Estudos sobre Justiça de Transição (CJT/UFMG).

[3] Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Extensionista do Centro de Estudos sobre Justiça de Transição (CJT/UFMG).