agosto 18, 2021
No dia 10 de agosto, o Brasil viveu mais um episódio do que a historiadora Lilia Schwarcz caracterizou como “teatro do poder”. No mesmo dia em que estava marcada a votação no plenário da PEC 135/19, conhecida como a PEC do voto impresso, o Ministério da Defesa realizou um desfile de blindados em frente ao Congresso Nacional. O objetivo do evento foi a entrega do convite para que Bolsonaro e o Ministro Walter Braga Netto acompanhassem um tradicional exercício da Marinha, conhecido como Operação Formosa, que se realizou na segunda-feira, dia 16 de agosto de 2021. A Operação acontece anualmente desde 1988 na cidade de Formosa/GO.
As circunstâncias que envolvem o episódio demandam reflexão sobre a atuação dos militares na história política do Brasil e a intensificação dos usos de narrativas do passado ditatorial nos momentos de instabilidade democrática. Pretendemos chamar a atenção para a relação entre a intervenção militar e a desestabilização do sistema político em determinados processos históricos e como que o episódio analisado invoca uma tentativa de articulação dessa relação no tempo presente.
O desfile de blindados, em frente ao Congresso, em um dia em que acontece uma votação de interesse da agenda política de Bolsonaro, não deve ser visto como algo isolado.
Não é novidade a ideia da intervenção militar inconstitucional no cenário político brasileiro. Podemos colocar em perspectiva a Proclamação da República em 1889, o golpe de Estado em 1930 e o golpe militar em 1964. Devemos destacar a existência de especificidades em cada processo e situar que a intervenção militar hoje está relacionada ao artigo 142 da Constituição Federal. Porém, é possível refletirmos que, em certa medida, existiu nesses momentos a defesa da atuação dos militares, baseada em uma determinada doutrina, e que se apresenta como uma espécie de salvação para ameaças à ordem e à segurança da nação. A articulação entre a intervenção das forças armadas e destituição de governos ainda paira nos fios da história e de tempos em tempos grupos buscam evocá-la.
Os tanques em frente ao congresso, no desfile de Bolsonaro, carregavam a tentativa da desestabilização do sistema político. Não é a primeira vez que o presidente Bolsonaro constrói discursos ou práticas que atacam as instituições democráticas. Nos últimos meses, o governo vem articulando narrativas em torno das eleições de 2022 e associando a possível derrota de Bolsonaro à existência de fraude.
Bolsonaro, em uma entrevista para a rádio Guaíba, no dia 7 de julho, declarou que “Eles vão arranjar problemas para o ano que vem. Se esse método continuar aí, sem a contagem pública, eles vão ter problemas. Porque algum lado pode não aceitar o resultado, e esse algum lado é obviamente o nosso lado. Queremos transparência, o voto auditável”. Bolsonaro diz que pode não aceitar o resultado de 2022 e volta a mentir sobre eleições de 2014 – CartaCapital. Esse discurso de Bolsonaro visa firmar a ideia da existência de fraude, em que o destino, diante de possível contrariedade à sua vontade, é o de não aceitar os resultados, o que configura nitidamente como uma ameaça à estabilidade democrática.
A proposta de Emenda à Constituição 135/2019, de autoria da deputada federal Bia Kicis do PSL/DF, visava adicionar o 12º parágrafo ao art. 14 da Constituição Federal. A alteração se destinava a expedição de extrato atestando o voto dado na urna eletrônica que emitiria cédula fiscal para a conferência do eleitor.
A PEC do voto impresso se apresentaria, então, como uma suposta solução para que as eleições de 2022 ocorressem sem fraude dos opositores do governo. Bolsonaro em suas declarações se mostrou controverso quanto ao assunto, declarou ter provas, mas não apresentou e sinalizou a inexistência das mesmas quando questionado. O desfile de blindados pode ser visto como uma tentativa de intimidação de Bolsonaro para que a votação fosse favorável à aprovação da PEC. Para buscar a garantia do resultado, o governo investe em uma articulação que consiste na intervenção militar e na desestabilização do sistema político. Dessa maneira, o conjunto de declarações do presidente se mostra um componente para execução de seu plano que tem como objetivo inflar um mal estar dos civis para com as instituições democráticas. Bolsonaro durante sua trajetória como parlamentar sempre buscou a evocação de um passado específico, sempre fazendo referências ao período ditatorial.
O desfile militar da marinha com passagem pela Praça dos Três Poderes trouxe novidades. Trata-se da primeira vez em que o convite ao presidente foi feito durante uma parada militar. A infeliz coincidência, como foi chamada por Arthur Lira, aconteceu no mesmo dia de importante votação que definiria os rumos da próxima eleição e não foi bem recebida pelo público. O objetivo de demonstrar força militar e intimidar opositores políticos restou frustrado, apresentando efeito contrário ao mostrar o poderio fraco, antiquado e ultrapassado da marinha. A imagem veiculada por um desfile de viaturas ultrapassadas e que soltavam uma fumaça escura como o passado brasileiro sob o jugo militar não trouxe bons agouros ao governo. Nesse sentido, a ação foi considerada uma piada nas redes sociais, sendo alvo de críticas e memes (Parada militar foi fiasco nas redes sociais: 93% dos posts são chacota).
Um ponto de controvérsia no discurso de Bolsonaro se dá sobre a validade dos resultados da última eleição presidencial. Mesmo sob constantes ataques atualmente, em 2018, várias entidades participaram da apuração dos votos, após autorização da Ministra Rosa Weber. O fato interessante se dá pela presença da coligação “Brasil Acima de Tudo, Deus Acima de Todos”, bem como pelos elogios feitos à ação que permitiu a cooperação das variadas entidades na contagem dos votos, o que foi classificado pela entidade como importante passo para “confiança na democracia”.
Além disso, a repercussão da parafernalha militar no centro do poder do país não foi bem aceita mundialmente. Diversos jornais estrangeiros citaram o episódio com tom de escárnio e ácidas críticas. O tradicional inglês The Guardian se refere ao evento como a parada militar da “república das bananas” de Bolsonaro (Bolsonaro’s ‘banana republic’ military parade condemned by critics). Já nos Estados Unidos, a visão negativa também se instalou, o New York Times cita os ataques à democracia por meio do boicote às eleições nos moldes atuais (Bolsonaro Prompts Fears of a Power Grab With Attacks on Brazil’s Voting System). O francês Le Monde fala sobre a demonstração de força em um momento de crise das instituições judiciárias brasileiras (Bolsonaro fait défiler l’armée à quelques pas du Parlement, en pleine crise avec les institutions judiciaires du Brésil). Em suma, o circo criado por Bolsonaro e seus aliados escancara a decadência das instituições no Brasil, bem como o afinco do governo em sua autodestruição.
Em território brasileiro as críticas também foram acentuadas. O presidente da CPI, Omar Aziz, abriu a sessão da CPI se manifestando contra as ações que Bolsonaro vem tomando para demonstrar poder e controle desregrado em afronta aos princípios constitucionais, caracterizando o ato como “patético” e declarou: “Não haverá voto impresso, não haverá nenhum tipo de golpe contra a nossa democracia. As instituições, com o Congresso à frente, não deixarão que isso aconteça. A democracia tem instrumentos para defender a própria democracia contra arroubos golpistas”
Os partidos políticos (PCdoB, PT, PDT, REDE, PSTU, PSB, PSOL e Solidariedade) não ficaram de fora e emitiram nota criticando o uso das forças armadas para intimidar os parlamentares e, consequentemente, influenciar a votação. No mesmo sentido, após a parada militar, deputados se reuniram na câmara em ato contra as ameaças à democracia que estão sendo realizadas.
O cenário aponta para uma intensificação do uso dos símbolos e discurso da intervenção militar na esfera política pelo governo Bolsonaro. A instabilidade que vivemos atualmente pode ser vista como um dos desdobramentos das ações de um chefe de Estado que defende um passado ditatorial e constrói ameaças constantes ao bom funcionamento das instituições democráticas. Não podemos perder de vista que essa intensificação pode significar o enfraquecimento do poder de articulação do governo para manter a agenda política e econômica. É preciso, como aponta o historiador Fernando Perlatto, “permanecermos atentos politicamente para chamarmos pelo nome aqueles movimentos que colocam em risco a democracia e os direitos humanos”.
Por Hygor Mesquita Faria [1], Thaís Garcia de Castro [2].
Mais em:
[1] Mestrando em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Extensionista voluntário do CJT – UFJF.
[2] Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Extensionista voluntária do CJT – UFMG.