novembro 4, 2020
Convive-se hoje, no Brasil, com cotidianos ataques à democracia, notadamente no cenário federal. Embora frequentemente partam do Executivo, é necessário reconhecer as contribuições do Judiciário e do Legislativo para o contexto atual. Recentemente, por exemplo, o Deputado Ricardo Barros (PP-PR), líder do governo no Câmara dos Deputados, defendeu a elaboração de uma nova Constituição para o país, já que a de 1988 teria “só direitos”, tornando o país “ingovernável”.
Ocorre que ainda temos muita luta para concretizar os direito trazidos pela Carta de 1988. Os avanços políticos conseguidos pelo Brasil nas últimas décadas foram resultado de uma Constituição que incluiu a sociedade brasileira na sua elaboração. Isso se deu pela participação ativa dos trabalhadores (sobretudo representado pelo efervescente movimento sindicalista), dos movimentos feministas, dos movimentos negros, da OAB, das Pastorais da Igreja Católica. Em números foram 72 mil cartas enviadas, das 122 emendas populares apresentadas, 83 foram consideradas válidas, sendo que para serem válidas, precisavam ter 30 mil assinaturas.
A história do processo constituinte é mais ampla do que os procedimentos da Assembleia Nacional Constituinte (ANC) de 1987-1988. Este processo foi expandido e incorporado pela sociedade brasileira, trazendo exemplos de inclusão e de desenvolvimento regional. O exemplo mais nobre disso é o Orçamento Participativo. Através dele, conseguiu-se organizar e trazer para a disputa do orçamento parcelas da população antes totalmente invisibilizadas e excluídas desse debate.
Enquanto isso, aproximam-se as eleições municipais, cujo primeiro turno se realizará no dia 15 de novembro. Como se esperaria, também nos municípios são reproduzidas tentativas de retiradas de direitos e de impedimento da cidadania ativa e participação social. É nesse sentido que instrumentos legais, como Orçamento Participativo, antes usados para aprofundar a participação da população na vida política, têm sido desrespeitados.
Diante disso, nos perguntamos: como este instrumento de participação política tem sido tratado na cidade? Quais caminhos têm sido traçados para a sua utilização no futuro? É possível fomentar a democracia com melhores políticas de participação social?
No dia 10 de Setembro de 2020, a Câmara Municipal aprovou em primeiro turno a Proposta de Emenda à Lei Orgânica (PELO) 1/2017, que inclui o Orçamento Participativo (OP) na Lei Orgânica do Município. A aprovação representa uma conquista para a participação popular na cidade, uma vez que – confirmada a aprovação em segundo turno – confere ao OP força de lei, permitindo que a população cobre a aplicação do instrumento, independentemente de quem estiver à frente da prefeitura. Porém, a situação do OP em Belo Horizonte está longe de ser satisfatória.
O projeto aprovado está tramitando na Câmara desde o início de 2017 – ou seja, ao longo de toda a administração Kalil – e só foi pautado pela presidência da Câmara justamente na véspera das eleições municipais. Antes disso, foram apresentadas 4 emendas ao projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2021 que abordavam o OP, pautando, dentre outros pontos, a conclusão das obras paradas, aplicação de 5% do orçamento para o instrumento e a retomada dos processos participativos – todas elas foram rejeitadas.
Estes são sinais do desinteresse com a participação popular que se instaurou na prefeitura desde a gestão de Márcio Lacerda, e que tem perdurado pela administração Kalil. Como mostra o Gráfico 1, a partir de meados de 2009, o OP passou a acumular um grande número de obras não concluídas, enquanto novas obras seguiam sendo aprovadas. Ou seja, as rodadas do OP continuaram sendo realizadas, compromissos foram firmados com a população para a realização das obras eleitas, mas, mesmo depois de anos de espera, muito pouco foi cumprido.
Gráfico 1: Empreendimentos aprovados e concluídos no OP até 2018. Fonte: produzido pelos autores com base em dados fornecidos pela Secretaria Municipal de Governo/PBH em abril de 2018.
Com isso, formou-se um enorme passivo de obras do OP, que em 2016 era de 450 obras inconclusas [1]. Com o início da gestão Kalil, a prefeitura anunciou que, para que as obras fossem concluídas, não seriam feitas novas rodadas do OP. Em quatro anos de mandato, a prefeitura concluiu 104 destas obras, deixando 346 ainda no passivo.
Mesmo com o compromisso da atual prefeitura em concluir as obras paradas, uma questão fundamental foi mantida da gestão anterior: a diminuição dos recursos destinados ao OP no orçamento municipal. Como mostra o Gráfico 2, a parcela do orçamento municipal aprovada para o OP, que vinha crescendo desde 2002, passa a cair a partir de 2009, enquanto cai ainda mais o valor empenhado – ou seja, aquilo que de fato foi aplicado para a realização das obras escolhidas. Em alguns anos (2014, 2016 e 2018) verifica-se ainda uma alta nos valores aprovados, mas o empenhado mantém-se em números baixíssimos. Observa-se portanto uma expressiva diminuição do OP no orçamento da cidade, tanto na gestão Lacerda (2009 a 2016), quando no mandato de Alexandre Kalil (2017 em diante).
Gráfico 2: Orçamento aprovado e empenhado do OP em relação à Despesa Capital do Município. Fonte https://outraspalavras.net/estadoemdisputa/eleicoes-e-hora-de-resgatar-o-orcamento-participativo/
Tudo isso indica uma falta de comprometimento da prefeitura com a participação cidadã conquistada a partir do OP. Mesmo com toda a mobilização popular e com o sério trabalho dos técnicos dedicados ao OP desde sua criação, a falta de vontade política é capaz de inviabilizar completamente o pleno funcionamento deste instrumento de democratização da cidade.
Mas nem sempre foi assim. Em seus anos iniciais, o OP de Belo Horizonte representou uma das primeiras e mais exitosas experiências de participação popular na administração urbana em todo o mundo. Realizava-se aquilo que ficou conhecido como “inversão de prioridades”: todos os anos uma parcela do orçamento estava garantida para as áreas mais necessitadas da cidade que, até então, haviam sido excluídas do planejamento. O OP passou a representar o meio pelo qual as periferias, vilas e favelas conquistavam obras e intervenções essenciais, como contenção de encostas, unidades habitacionais, centros culturais, postos de saúde, e mesmo planos de urbanização.
Além disso, o OP se tornou uma forma de incentivar a organização e participação da sociedade civil. As associações de moradores, movimentos sociais e cidadãos interessados em abordar os problemas de seus bairros mobilizam-se em massa, até as últimas rodadas do OP, para pleitear recursos para as regiões mais carentes da cidade. Com isso, não só faziam-se ouvir as demandas da população, como também estabeleceu-se um espaço para que o povo tomasse conta dos processos políticos de sua região e da cidade como um todo. Uma verdadeira escola da cidadania e da política.
Entretanto, atualmente o que se vê são obras paralisadas por toda a cidade e a desmoralização dos processos do OP. Um exemplo claro está no bairro Providência, regional Norte de BH. A população da região, historicamente organizada em torno de movimentos da Igreja Católica, mobilizou-se no OP de 2013/2014 (iniciado em 2012) para conquistar a reforma da praça da Igreja de Santo Antônio. A praça é um dos poucos locais de lazer da região e ponto tradicional para realização de eventos culturais e assim, sua reforma foi aprovada no OP com valor R$ 1,946 milhões.
Passados oito anos, não só a obra não foi iniciada, como entrou para a lista do “escopo otimizado” da prefeitura. Ou seja, por conta da pouca destinação de recursos para o OP, foi apresentado um novo projeto com orçamento reduzido (e valor ainda não divulgado) para a realização de uma reforma menos abrangente e diferente daquela aprovada pela população oito anos atrás. Assim, a praça segue em situação de abandono enquanto a população do bairro assiste o aumento da criminalidade e decaída das atividades culturais da região.
É importante reconhecer que existe um avanço em relação à gestão anterior. A paralisação das rodadas para conclusão das obras do passivo, assim como a aprovação da PELO representam uma lenta caminhada em direção à retomada do sucesso do OP. Entretanto, questões fundamentais seguem sem resposta.
A PELO não aborda, por exemplo, a quantidade ou a fonte dos recursos do OP, que têm sido cada vez mais escassos, nem mesmo garante a transparência em seu manejo. Pelo contrário, as propostas de emenda à LDO que abordavam estas questões e, portanto, apresentavam um caminho muito mais claro para a retomada do OP, foram rapidamente descartadas pelo bloco governista na Câmara. Desta forma, o que se enxerga é um OP longe do controle da população.
A Constituição Federal de 1988 foi fundamental em inspirar o desenvolvimento de mecanismos de participação. Isso, não apenas pela representatividade e diversidade transposta em seu texto, mas também por desenvolver instrumentos e estruturas que possam acompanhar a implementação destas políticas nos demais entes federativos. A criação e a implementação do Orçamento Participativo certamente decorreu deste processo.
Em Belo Horizonte a aprovação da PELO representa uma nova possibilidade de mobilização. Profissionais do planejamento, associações e cidadãos têm agora a garantia da lei para pressionar a prefeitura – na legislatura atual e na que será eleita ao final deste ano – para a implementação daquilo que falta para a continuidade do OP. Assim, espera-se poder construir aos poucos o caminho para a retomada deste instrumento tão importante para a cidade de Belo Horizonte e, com isso, contribuir com a retomada da confiança da população na política.
Por Henrique Porto [2], Mariana Rezende Oliveira [3] e Philippe Silva [4].
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[1] Dados fornecidos pela Secretaria Municipal de Governo/PBH em abril de 2018 via Lei de Acesso à Informação.
[2] Estudante de graduação em Arquitetura e Urbanismo na EA UFMG, Pesquisador do Grupo de Pesquisa Indisciplinar e bolsista da pesquisa Cartografia da Percepção do Orçamento Participativo em BH
[3] Mestre e bacharela em Direito pela UFMG. Pesquisadora associada ao CJT – UFMG.
[4] Mestre e bacharel em Direito pela UFMG. Pesquisador voluntário do CJT – UFMG.