junho 19, 2019
No dia 9 de junho de 2019, o marasmo do final da tarde de domingo dos brasileiros e das brasileiras foi interrompido pela divulgação no site The Intercept Brasil de conversas entre membros da força-tarefa da Lava Jato e o agora Ministro a Justiça e ex-juiz federal Sérgio Moro.
Na primeira série, composta por três reportagens, o site divulgou conversas “altamente controversas, politizadas e legalmente duvidosas” na qual membros do Ministério Público e o ex-juiz Sérgio Moro trocavam informações referentes aos processos e que nunca chegaram aos autos. Os diálogos reacenderam o debate sobre alegações de caráter político e parcial da operação.
O escândalo, que movimentou as redes sociais com a tag #vazajato, alimenta o debate entre detratores e defensores da Operação Lava Jato. De impacto inegável – com desdobramentos internacionais – o apoio à operação vê-se abalado em face das alegações de parcialidade, agora, subsidiadas pelos vazamentos.
Com alguns trechos das conversas sendo considerados mais problemáticos do que outros, a colaboração entre Moro e Dallagnol na estratégia da operação apresenta-se como uma grave violação dos princípios que regem o Direito Penal e o Direito Processual Penal brasileiro. Além disso, apontam um enfraquecimento do constitucionalismo e do Estado Democrático de Direito, como mostraremos a seguir.
Animados por um discurso “contra a impunidade”, setores da sociedade culpam um suposto “excesso de garantias penais” para acusados no processo penal. O Código de Processo Penal (CPP) surgiu em 1941, durante o Estado Novo, permeado por características autoritárias. Ainda vigente e com várias reformas, o CPP sofre de um vício estrutural, típico de sua origem autoritária: o predomínio de características do sistema inquisitorial.
A partir da Constituição Federal de 1988, é possível observar o fenômeno da constitucionalização do sistema processual penal brasileiro, com a consolidação de um conjunto de garantias processuais-penais. Buscou-se resguardar os direitos fundamentais e assumiu-se, assim, a prevalência de um sistema acusatório.
O sistema inquisitorial tem um caráter subjetivo, em que se acumulam as funções de julgar e de acusar em uma mesma figura. O sistema acusatório, por sua vez, visa tutelar as liberdades individuais em um processo de racionalização do poder punitivo. Neste sistema, o processo de incriminação deve se basear em critérios objetivos, assumindo uma aplicação igualitária do Direito Penal, por meio do contraditório e da ampla defesa, cooperando para a manutenção da democracia.
A troca de mensagens em meio não-oficial entre Sérgio Moro e o Procurador da República, Deltan Dallagnol, então responsáveis pela Operação Lava-Jato, corrobora com a dinâmica arbitrária a prática processual penal brasileira, em que o juiz é capaz de influir no processo, inclusive oferecendo dicas sobre como deveria se desenrolar as investigações, papel este que não lhe cabe, visto que estaria se afastando da posição de árbitro desinteressado. Este tipo de prática mais se aproxima do modelo arcaico do CPP e não leva adiante a filtragem pela qual ele deve passar perante a Constituição de 1988. É isto que diversos estudiosos criticam há tempos no Brasil.
Os princípios da imparcialidade, do juiz natural e da legalidade são limites estabelecidos para a atuação do Poder Judiciário, a fim de se respeitar o devido processo legal e a manutenção de um regime democrático. Os princípios nada mais são do que padrões normativos a serem seguidos, a fim de regular a atuação do Estado.
A Constituição Federal de 1988 fez uma alteração substancial ao fortalecer a independência do Poder Judiciário, condição essencial para a edificação de um modelo democrático de Estado de Direito. Contudo, isso não dá protagonismo ao juiz , a quem é vedado assumir a figura de herói e adotar condutas discricionárias.
A titularidade da ação penal cabe, com exclusividade, ao Ministério Público, enquanto o juiz deve ser garantidor dos direitos fundamentais do acusado no processo. Entre eles, há uma estrutura de diálogo, em busca de uma justiça procedimental. A falta de demarcação entre as funções de acusar e julgar contribuem para a instauração de um procedimento destinado previamente a condenar, contrariando a previsão constitucional do princípio da presunção de inocência.
Em “How to save a constitutional democracy”, Tom Ginsburg e Aziz Huq identificam três instituições indispensáveis para uma democracia:
A integridade do direito e das instituições jurídicas são essenciais para uma democracia, já que elas representam as “regras do jogo”. Na disputa eleitoral, por exemplo, elas permitem aos cidadãos participação democrática sem medo de coerção. No caso das informações reveladas pelo Intercept, a combinação entre julgador e acusador sobre qual a melhor estratégia para garantir o sucesso da operação e do processo representa uma clara violação dessas “regras do jogo”.
O artigo 254, inc. IV, do Código de Processo Penal é claro:
“O juiz dar-se-á por suspeito, e, se não o fizer, poderá ser recusado por qualquer das partes:
[…]
IV – se tiver aconselhado qualquer das partes;””
A aplicação de leis de uma maneira clara e consistente é essencial para uma democracia dado que estabiliza comportamentos e evita o uso partidário da lei, que distorce a escolha eleitoral. Ao ter se envolvido na direção da investigação, Moro desrespeitou não só a legislação brasileira, mas atuou sobre as regras do jogo democrático – já que um acusado julgado por ele deveria concorrer às eleições presidenciais. Sua atuação, mais claramente exposta agora, contribui para a desconfiança das instituições que deveriam defender o Estado de Direito e, consequentemente, a democracia.
Como pontuam Ginsburg e Huq, não é apenas em relação ao processo eleitoral que devem ser observados os requisitos de clareza, consistência e aplicação neutra da lei: os elementos coercitivos (como o Direito Penal) também devem ser limitados pela primazia do direito (Ginsburg e Huq, 2018, p.13).
Por trás da ideia de “constitucionalismo” está a limitação do poder do Estado em face dos cidadãos. Trata-se uma proteção para evitar abusos do poder. Quando os agentes públicos encarregados de garantir essa proteção fazem justamente o contrário, demonstram e contribuem para um desgaste deste compromisso de proteção – estão dispostos a se desfazer dos direitos dos cidadãos para fazer valer o que quiserem, ilimitados pela lei.
A atuação concertada entre o MPF e o juízo, não documentada no processo, torna-se ainda mais gravosa para a democracia quando se avaliam as implicações eleitorais dela derivadas. O uso do poder do Estado para interferir nas eleições é manobra típica de governos autoritários. Os vazamentos mostram como os membros do MPF e integrantes da força-tarefa demonstram sua indisposição com a possibilidade de uma vitória do PT nas eleições presidenciais de 2018.
É curioso verificar que o ex-juiz Sérgio Moro, desde 2004, defende como não problemático o fato de se manter alguém preso para a obtenção de uma confissão ou delação e que haveria uma leitura excessivamente liberal do direito à presunção de inocência no Brasil. É este o tipo de flexibilização do Estado de Direito (em inglês, o rule of law, ou a estabilidade e previsibilidade) que é criticado por Ginsburg e Huq (2018).
A atuação do ex-juiz Sérgio Moro, assim como do Procurador da República Deltan Dallagnol, foi severamente criticada por juristas e mesmo por sociólogos como Jessé Souza. Ao invés de enxergar na Operação Lava-Jato uma conspiração total, o que se percebia é que ela representava bem a comunhão de valores do que chamava de uma “casta jurídica”: pessoas que, após aprovação em um difícil concurso público, passam a receber altas remunerações que as qualificariam para melhor impor um senso de moralidade por elas criado. Ou, para usar as palavras do Ministro do STF, Luís Roberto Barroso, para “empurrar a história“. Os diálogos têm mostrado uma dura realidade que priva tais indivíduos da aura de heróis, aos mesmo tempo em que trazem à luz as combinações que nada têm a ver com o respeito à Constituição e ao direito brasileiros.
É urgente avançar nas investigações para esclarecer o quanto motivações político-eleitorais guiaram o trabalho do grupo e a extensão da colaboração entre Moro e Dallagnol. Caso contrário, permanecerá a nuvem de incertezas sobre o caráter ilegal e antidemocrático de boa parte da Operação Lava-Jato.
Por Emilio Meyer¹, Mariana Rezende² e Bárbara Galvão³
Para mais informações, leia aqui:
Todas as reportagens do Intercept Brasil – https://theintercept.com/2019/06/09/editorial-chats-telegram-lava-jato-moro/
Lilia Schwarcz: “O Judiciário foi usado como vingança e impediu que a democracia siga seu curso” – https://brasil.elpais.com/brasil/2019/06/05/cultura/1559759225_896804.html
Provas obtidas de modo ilegal são válidas em julgamentos? –
1 Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UFMG. Coordenador do Centro de Estudos sobre Justiça de Transição da UFMG (CJT/UFMG).
2 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFMG. Bolsista CAPES-PROEX. Pesquisadora do Centro de Estudos sobre Justiça de Transição (CJT/UFMG).
3 Graduanda em Direito pela UFMG. Pesquisadora do Centro de Estudos sobre Justiça de Transição (CJT/UFMG).