31 de março: Não há nada a ser comemorado

março 31, 2021

Brasil

Este não é um 31 de março como outro qualquer. Após atingida a triste marca de mais de 300.000 brasileiros vítimas do Coronavírus e estando imersos no maior colapso sanitário da nossa história e em uma crise política, ainda é preciso lutar pela democracia em um país governado pela extrema-direita.

Assim, é necessário não somente reforçar o compromisso constitucional de acesso dos cidadãos aos inúmeros direitos que têm sido violados sistematicamente, mas também o compromisso constitucional fundador da própria constitucionalidade vigente: a ruptura com a ditadura civil-militar (1964-1985).

O governo federal e parcela do Poder Judiciário parecem compreender que é possível comemorar a data de 31 de março de 1964 e chamar o período de “revolução” e “movimento”. Todavia, não há nada a ser comemorado quando a referida data estabelece o início de um período de arbítrio e violência, marcando o dia daquilo que foge à semântica dos negacionistas: golpe.

Para o STF: uma data comemorável

A eleição de Jair Bolsonaro, conforme já pontuamos em alguns textos deste blog, representou a institucionalização de sua narrativa negacionista sobre o período da ditadura brasileira. Assim, o dia 31 de março de 1964 foi comemorado durante seu governo, o que ocorreu nos anos de 2019, 2020 e também agora em 2021, por meio de notas emitidas pelo site do Ministério da Defesa. Neste ano, a nota já foi veiculada no dia 30 de março, no mesmo sentido das anteriores, em que se defende a exaltação e celebração da data.

Ocorre que a discussão sobre a constitucionalidade da emissão dessas notas foi levada ao Supremo Tribunal Federal para que a corte decidisse quanto à possibilidade ou não de comemoração da data em questão.

No ano de 2019, o Ministro Gilmar Mendes negou conhecimento a um mandado de segurança coletivo impetrado pelo Instituto Vladimir Herzog e outros interessados – vítimas e familiares de vítimas das violações perpetradas pelo regime – que, por meio desse remédio constitucional, buscavam evitar a comemoração pretendida pelo governo federal à data de 31 de março de 1964. Na decisão, o Ministro argumentou, dentre outros pontos, que seria possível a comemoração, visto que o Estado Democrático de Direito abarca o pluralismo de ideais, inclusive o pluralismo de pontos de vista históricos que consideram a data em questão enquanto revolução ou movimento.

Em 2020, o Ministro Dias Toffoli suspendeu liminar que ordenava a retirada da nota comemorativa ao dia 31 de março de 1964 do site do Ministério da Defesa. Os argumentos apresentados pelo julgador foram no sentido de que impedir a comemoração representaria um ato de censura, que o Ministério da Defesa teria competência para a manifestação e que não caberia ao Poder Judiciário realizar avaliações históricas sobre o período, sendo essa uma tarefa de historiadores.

Ambas as decisões abriram precedentes para julgados como o do Tribunal Regional Federal da 5ª região que, neste ano, acatou apelação da Advocacia-Geral da União, entendendo que a comemoração do dia 31 de março não seria contrária aos postulados do Estado Democrático de Direito e que a nota alusiva ao dia (publicada no ano de 2020) poderia ser mantida no site do Ministério da Defesa.

Todavia, essas decisões, além de negacionistas, são inconstitucionais. Não é possível haver a comemoração institucional de um golpe de Estado dentro de uma ordem democrática, ainda mais considerando que esse golpe deu início a um dos períodos mais violentos de nossa história. A Constituição de 1988 pretendeu suplantar as práticas daquele regime. Não se trata de um pacto entre aqueles que deixaram o poder e a sociedade civil. A Constituição de 1988 é uma ruptura com a ditadura civil-militar.

Nesse sentido, é importante reiterar e fazer coro aos historiadores comprometidos com seu ofício e aos juristas democráticos: 31 de março de 1964 não foi um movimento ou uma revolução, foi um golpe de Estado.

O dia que durou 21 anos

Na madrugada do dia 31 de março de 1964, horas depois do último discurso do então Presidente da República João Goulart (1961-1964), as tropas comandadas pelo general Olímpio Mourão Filho, da 4ª Região Militar, à época sediada em Juiz de Fora (MG), marcharam em direção ao Rio de Janeiro para, enfim, deflagrar o golpe de Estado.

A declaração de vacância do cargo da Presidência viria depois, em sessão do Congresso Nacional iniciada no dia 1º de abril, que empossou como interino o então presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli. Ocorre que quando da declaração de vacância do cargo, o Presidente João Goulart se encontrava em território nacional, não satisfazendo a condição de abandono do cargo necessária à sucessão presidencial prevista na Constituição de 1946.

Após as tentativas de resistência articuladas junto a militares legalistas e sociedade civil ao longo do dia 31 de março de 1964, Jango reconheceu que não seria possível se opor às forças militares e deixou, na data seguinte, o Palácio Laranjeiras rumo à Brasília, e, em seguida, Porto Alegre, de onde seguiria para o exílio no Uruguai.

Responsável por instaurar um regime de exceção no Brasil que perdurou por 21 anos, o golpe civil-militar foi resultado de uma conspiração que vinha se formando, pelo menos, desde 1961, quando teria havido um “golpe frustrado” que não foi capaz de impedir a posse de Jango após a renúncia de Jânio Quadros. A imposição da “solução parlamentarista”, que vigorou até o plebiscito de 1963, porém, por vezes é considerada também como uma espécie de golpe, pois não ocorreu conforme a Constituição de 1946 em vigor.

Foi no dia 31 de março, portanto, que aconteceu a efetiva movimentação golpista que interrompeu a legalidade democrática vigente com a tomada de poder pelos militares. A narrativa construída em torno de uma suposta necessidade de se defender a segurança nacional contra a “ameaça comunista” que pairava sobre o país serviu de sustentáculo para o golpe que, inclusive, contou com apoio internacional e de setores da sociedade civil, especialmente a imprensa e o empresariado brasileiro.

Ocorre que, diferentemente dos outros episódios da história política brasileira, os militares não somente consolidaram um golpe, como também permaneceram no poder, de modo que, do dia 31 de março de 1964 em diante, seguiram-se anos obscuros de autoritarismo e repressão no Brasil.

O sistema de repressão, um dos principais símbolos do regime ditatorial, não se concentrava somente em uma organização e englobava a articulação de mecanismos baseados no tripé vigilância, censura e repressão, com preponderância das Forças Armadas, mas também importante participação das Polícias Civis e Militares. Houve a utilização da estrutura repressiva já existente, como os Departamentos de Política e Ordem Social (DOPS), bem como a criação de órgãos de informação e repressão vinculados ao governo, como o Serviço Nacional de Informações (SNI), o Centro de Informações do Exército (CIE) e os Destacamentos de Operações de Informação (DOI) e Centros de Operações de Defesa Interna (CODI), consoante apontado no Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), publicado em 2014.

Além disso, formou-se um aparato legal repressivo a partir da edição de Atos Institucionais e de leis como a Lei de Segurança Nacional (LSN), que, ainda hoje, encontra-se em vigor. Tendo em vista o crescimento perigoso e exponencial da utilização da LSN para fundamentar a deflagração de investigações de opositores do governo Bolsonaro, a constitucionalidade da referida Lei está sendo questionada judicialmente.

Os atos institucionais, por sua vez, foram decretados pelo Executivo entre 1964 e 1969 e possuíam natureza constitucional, ou talvez até dotados de força supraconstitucional, vez que poderiam revogar ou alterar dispositivos previstos na Constituição sem que fossem respeitadas as formalidades necessárias. Por meio destes atos de força, que visavam conferir um aspecto de uma suposta legalidade às medidas de exceção, os partidos políticos foram dissolvidos, eleições indiretas foram determinadas, e o Congresso foi convocado para a promulgação da Constituição de 1967, por exemplo.

Outras medidas ainda mais gravosas foram tomadas a partir da publicação do Ato Institucional nº 5 (AI-5), em dezembro de 1968, que traduziu-se no aprofundamento e verticalização do sistema autoritário e repressivo da ditadura. O ato suspendeu a garantia de habeas corpus para crimes políticos, autorizou o fechamento do Congresso Nacional e das demais Casas Legislativas, bem como a intervenção federal nos Estados e Municípios sem respaldos constitucionais, além de ter ampliado as perseguições políticas, prisões, restrições aos direitos e liberdades individuais, cassações e expurgos do serviço público, com o endurecimento da brutal repressão ao movimento estudantil e de trabalhadores e a todas as forças da oposição.

É importante pontuar que, ainda que tenham sido intensificadas através da decretação do AI-5, a série de graves violações perpetradas pelo governo se verifica desde o início da ditadura, com as cassações de mandatos e suspensão de direitos políticos, prisões arbitrárias, tortura e violência ocorrendo já em 1964 – sendo a deflagração da Operação Limpeza um exemplo disso.

Nos termos do Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade, as principais violações de direitos humanos cometidas pelo Estado durante o período ditatorial consistiam em detenção (ou prisão) ilegal ou arbitrária; tortura; execução sumária, arbitrária ou extrajudicial, e outras mortes imputadas ao Estado; e desaparecimento forçado e ocultação de cadáveres. Por fim, o Relatório Final da CNV apontou que, no período apurado – entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988 –, foi identificado um total de 434 mortos e desaparecidos políticos, além de milhares de pessoas que sofreram com a cruel tortura praticada metódica e sistematicamente pelos agentes do Estado.

A quantidade de vítimas do regime, contudo, não deve se resumir aos números contabilizados, tendo em vista a dificuldade inerente a esse tipo de investigação, demonstrada, inclusive, na discrepância averiguada em relação a outros levantamentos realizados por comissões e instituições. Assim, esses não são números finais e fechados, estima-se que sejam maiores, principalmente no que diz respeito às mortes de indígenas e camponeses. Nesse sentido, é imprescindível que os esforços de revelação da verdade e reconstrução da memória histórica da ditadura continuem sendo empreendidos, com vistas a efetivar e fortalecer os pilares da justiça de transição, o regime democrático brasileiro e a cumprir com os compromissos assumidos constitucionalmente.

Seriam só 21 anos? 

Diferentemente da afirmação contida na nota comemorativa publicada em 2020 pelo Ministério da Defesa, o dia 31 de março não configura, de maneira alguma, um marco para a democracia. Ao contrário, a data representa o rompimento com a ordem democrática brasileira, inaugurando um período de inúmeras violações de direitos humanos e crimes de lesa-humanidade, o que causou marcas profundas no tecido político e social do país.

Ato “Ditadura Nunca Mais” na avenida Paulista com a presença da sociedade civil sindicatos e movimentos sociais. São Paulo 06/08/2019 – Foto: Roberto Parizotti

A institucionalização de uma narrativa negacionista sobre o período em que se comemora um golpe de Estado é a evidência de um país que fracassou em sua justiça de transição. Ao recepcionar a Lei de Anistia na ordem constitucional vigente, o Supremo Tribunal Federal, por meio da ADPF 153, abriu o precedente não só para a não responsabilização criminal dos agentes perpetradores de violências, mas para decisões que comportam a possibilidade de se relativizar o golpe.

Desse modo, os 21 anos de arbítrio e violência ainda ecoam no Brasil, mas, infelizmente, sob a forma de negação do que foram aqueles anos. Assim, teme-se um retorno a um autoritarismo similar ao desses anos, temor que se agudiza cada vez mais quando se vive a maior crise das Forças Armadas desde a demissão de Sylvio Frota do Governo Geisel. Após a demissão do Ministro da Defesa, os chefes das três Forças, em um ato até então inédito, colocaram seus cargos à disposição. Esse ato, para alguns analistas, que teriam consultado fontes militares, significaria que esses comandantes das FA’s não estariam dispostos a se curvar diante de um desejo do Presidente: a implementação do Estado de Sítio.

Embora tal desejo ainda não tenha se confirmado, essa informação parece ser corroborada pela apresentação de um Projeto de Lei, no último dia 29, pelo líder do PSL na Câmara dos Deputados, Major Vitor Hugo, com requerimento de urgência para ser colocado em pauta e submetido à votação da Casa Legislativa. O PL pretende autorizar a decretação de um Estado de Mobilização Nacional, previsto no inciso XIX do art. 84 da Constituição Federal para casos de guerra, também em situação de crise sanitária, o que ampliaria os poderes de Bolsonaro, ao menos, no que diz respeito ao combate da pandemia.

Não há como saber, por ora, qual será o desfecho destes últimos acontecimentos, os quais indicam, no mínimo, a necessidade pungente de se manter vigilante. A única certeza possível no dia de hoje, 31 de março de 2021, é que não há nada a ser comemorado.

* Texto finalizado no dia 30 de março de 2021 às 19:00.

Por Júlia Guimarães [1] e  Luísa Mouta Cunha [2].

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[1] Mestranda em Direito na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Bolsista CAPES. Pesquisadora associada ao Centro de Estudos sobre Justiça de Transição (CJT/UFMG).

[2] Graduanda em Direito na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Extensionista do Centro de Estudos sobre Justiça de Transição (CJT/UFMG).