março 11, 2020
Em 25 de fevereiro de 2020 foi noticiado que o presidente da República compartilhou um vídeo no qual convocava a população para atos que serão realizados no dia 15 de março do corrente ano, cuja pauta, dentre outras, inclui manifestações contrárias à independência do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal (STF).
A convocação foi realizada por meio de um vídeo no qual a imagem de Jair Bolsonaro é associada à de um messias que teria colocado sua própria vida em defesa de parcela da sociedade brasileira contra a “esquerda corrupta e sanguinária”. Por isso, seria preciso que a “família brasileira” mostrasse sua força nas ruas de todo o Brasil no dia 15 de março em apoio ao presidente e contra os chamados “inimigos do Brasil”. A convocação foi reforçada em discurso presidencial nos Estados Unidos e somada a um ataque à lisura do pleito que o elegeu.
Um anúncio das intenções presidenciais com referido vídeo talvez tenha sido feito dias antes pelo general Augusto Heleno, atual ministro do Gabinete de Segurança Institucional, que, em áudio vazado pela imprensa, disse que o governo estava sendo chantageado pelo Congresso Nacional, motivo pelo qual seria preciso tomar alguma atitude, qualquer que ela fosse.
Como era de se esperar, a conduta presidencial sofreu reprimendas. Os presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre, manifestaram-se contrariamente à divulgação do vídeo pelo presidente da República. O ministro presidente do STF, Dias Toffoli, e o ministro decano do Tribunal, Celso de Mello, também se posicionaram nesse exato sentido. O último, inclusive, chegou a sustentar a possibilidade de enquadramento do ato como crime de responsabilidade.
Um ataque às instituições da República e ao regime das liberdades democráticas de tal monta parece não levantar dúvidas quanto à possibilidade de responsabilização político-jurídica do presidente por meio do impeachment.
Mas, para além deste debate, que agora se concentra muito mais sobre o momento adequado para abertura de um processo de impeachment contra o presidente do que sobre a configuração, ou não, de crime de responsabilidade, chama atenção outro movimento do atual governo: o esforço em torno da aprovação das “reformas” encaminhadas pela pasta econômica liderada pelo ministro Paulo Guedes ao Congresso Nacional.
No dia 3 de março, o ministro Paulo Guedes se reuniu com representantes de movimentos civis que dão sustentação à pauta econômica do governo em uma tentativa de ganhar apoio popular em favor das “reformas”. Em pauta estavam as reformas administrativa e tributária, bem como a revisão do pacto federativo. Não houve qualquer tipo de relação com os atos convocados pelo presidente da República para o dia 15 de março.
Na oportunidade, Paulo Guedes chegou a apresentar um cronograma para aprovação das mudanças. Nas suas palavras, seriam “15 semanas para mudar o Brasil”. Movimentos contrários às propostas de Guedes não foram convidados a participar do encontro que se realizou na casa do secretário de desestatização, desinvestimentos e mercados, Salim Mattar. Local este um tanto quanto indicativo das pretensões governamentais com tais reformas.
A intenção não é nova. Em sua primeira entrevista concedida como ministro da economia, Paulo Guedes já havia anunciado que ao lado da reforma da previdência, aparentemente a principal pauta da pasta econômica do governo Jair Bolsonaro, havia outra frente de atuação: uma reforma mais ampla para alterar o pacto federativo, acabar com as despesas obrigatórias e as vinculações orçamentárias e modificar o sistema tributário.
Nem mesmo a Constituição poderia frear o ímpeto reformista do atual governo: bastaria, para tanto, apresentar e promulgar propostas de emenda à Constituição que os problemas estariam resolvidos. Simples assim. Nenhuma preocupação em relação aos limites materiais impostos ao poder de reforma da Constituição. A aliança entre “liberais” e “conservadores” formada pelas eleições de 2018 pareceu ser justificativa suficiente para superar tais obstáculos.
Nessa toada, foram apresentadas, perante o Senado Federal, as propostas de emenda à Constituição n. 186, n. 187 e n. 188 de 2019, como medidas aptas a promoverem a “mudança do Brasil” anunciada por Paulo Guedes. Referidas medidas pretendem reequilibrar as contas públicas do país, ao argumento da necessidade de racionalização dos gastos e do equilíbrio fiscal intergeracional.
As mudanças pretendidas assumem, expressamente, a necessidade de reavaliação dos compromissos assumidos pela Constituição. Em pauta, portanto, está o debate sobre os efeitos dos compromissos assumidos pelas gerações do passado sobre a geração do presente e a repercussão dos compromissos assumidos pela geração do presente sobre as gerações vindouras. Uma disputa sobre o que foi, está sendo e ainda será constituído pelo projeto constituinte inaugurado em 1988, pois.
Tendo como fundamentos a cidadania, a dignidade da pessoa humana e o pluralismo político (artigo 1º, incisos II, III e V, da Constituição de 1988), este projeto constitucional se apresenta comprometido com a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, em que o desenvolvimento nacional deve ser acompanhado pela erradicação da pobreza e da marginalização, pela redução das desigualdades sociais e regionais e pela promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (artigo 3º, incisos I, II, III, e IV, da Constituição de 1988).
É justamente contra esse núcleo normativo que as propostas de emenda à Constituição encaminhadas pelo governo estão voltadas. A geração de excedentes financeiros para abatimento da dívida pública parece ser, agora, um núcleo de proteção alternativo da Constituição. Um processo que vem desde a emenda constitucional n. 95/2016, como bem explicita a justificativa da proposta de emenda à Constituição n. 186/2019.
Essas propostas de emenda constitucional pretendem transformar os compromissos assumidos por este projeto constituinte em obstáculo ao desenvolvimento nacional, razão pela qual os mesmos deveriam ser abandonados. De condição de possibilidade para o redimensionamento dos direitos e das instituições políticas do Estado brasileiro, referidos compromissos estão sendo transformados em impedimentos a ele.
Ao invés do financiamento de programas sociais para promoção do bem-estar e da justiça sociais, objetivos da ordem social instituída pela Constituição de 1988 (artigo 193), a intenção é elevar o pagamento da dívida pública à condição de núcleo normativo alternativo de identidade deste projeto constitucional. Como em um passe de mágica, por uma canetada, o Estado social seria transformado em um Estado mínimo.
A literatura produzida no campo do Direito Constitucional Comparado aponta que tem sido cada vez mais comum o uso de emendas constitucionais para alterar significativamente as ordens constitucionais estabelecidas, demonstrando que a questão não é uma singularidade brasileira.
David Landau, por exemplo, afirma que atores políticos descompromissados com “valores democráticos” estão recorrendo às emendas constitucionais como meio para tornarem um Estado menos “democrático” do que era antes. É o que o autor denomina de constitucionalismo abusivo (abusive constitutionalism).
Por sua vez, Richard Albert apresenta o conceito de desmembramento constitucional (constitutional dismemberment) para se referir a emendas constitucionais que alterariam a configuração do quadro de direitos garantidos por uma constituição, a estrutura organizacional dos poderes constituídos e a própria identidade de um determinado projeto constituinte.
Como pano de fundo, mais uma vez, está o dilema da estabilidade e da mudança no Direito Constitucional e, em última instância, a vinculação das gerações do presente e do futuro aos compromissos assumidos pelas gerações passadas. Com isso, não se está a dizer que a Constituição não mereça reparos e nem que não possa recebê-los. Tampouco que a Constituição admita quaisquer alterações em seu texto.
Uma constituição inteiramente imutável, além de antidemocrática, já que impossibilitaria as gerações futuras de decidirem sobre seu próprio destino, não resistiria ao teste do tempo, por ser incapaz de atender às exigências e necessidades por mudanças. Por outro lado, uma constituição cujo processo de alteração seja extremamente facilitado estaria ao sabor das maiorias ocasionais perdendo, assim, sua capacidade de assegurar direitos, em face das investidas das forças econômicas, políticas e sociais.
Agora, portanto, mais do que nunca, além do costumeiro discurso de ataque às instituições da República e às liberdades democráticas por parte do presidente, é preciso estar atento aos movimentos já colocados em pauta contra as bases das ordens econômica, financeira e social da Constituição.
Por Almir Megali Neto [1]
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[1] Mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Agradeço ao professor Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira pela interlocução.