novembro 1, 2019
Foi amplamente divulgada, no dia 31 de outubro de 2019, a entrevista dada pelo Deputado Federal Eduardo Bolsonaro, filho do Presidente da República Jair Bolsonaro, à jornalista Leda Nagle. Após associar o mais variado espectro político da oposição a apenas “a esquerda”, que estaria, de seu turno, culpando seu pai por diversos problemas no país, o Deputado Federal disse: “Se a esquerda radicalizar a esse ponto, a gente vai precisar ter uma resposta. E uma resposta pode ser via um novo AI-5, pode ser via uma legislação aprovada através de um plebiscito como ocorreu na Itália. Alguma resposta vai ter que ser dada”. Na sequência, o Deputado ainda ratificou as declarações ao postar um vídeo em que seu pai, o Presidente Jair Bolsonaro, homenageia o torturador Brilhante Ustra e, em outro vídeo, ao tentar explicar, com inconsistências históricas, o que foi o AI-5.
A afirmação vem em contexto de direta resposta à divulgação feita pela mídia de eventual menção ao nome do Presidente Jair Bolsonaro no curso da investigação criminal do homicídio cometido contra a Vereadora Marielle Franco. Ocorre que, por mais que também seja um ato distrativo de questão de relevo nacional (a mencionada investigação), a defesa do retorno ou de novas vestes para o Ato Institucional nº 5/1968 (AI-5) configura verdadeira agressão à ordem jurídico-constitucional, ensejando imediata cassação do mandato eleitoral.
A ditadura civil-militar e empresarial de 1964-1985 erigiu-se sobre diversos documentos de pretenso verniz jurídico. Os atos institucionais, na verdade, eram atos de força. Ao contrário do que se tem difundido, o AI-5 não mergulhou, por si só, o país em uma ditadura escancarada: isto já havia ocorrido desde 1964 com seu golpe de 31 de março. Torturas, prisões ilegais, execuções extrajudiciais e desaparecimentos forçados ocorreram desde a primeira hora. O que o AI-5 promoveu foi um aprofundamento e uma verticalização do sistema autoritário e repressivo, erigindo-se no documento mais aterrorizante de nossa história política. Renovou a impossibilidade de discussão judicial dos mesmos atos institucionais e complementares, ampliou de larga forma o número de cassações políticas, fechou o Congresso Nacional e demais casas legislativas, passou a tratar qualquer cidadão como inimigo em potencial do regime, suspendeu a garantia do habeas corpus para crimes políticos, impulsionou a aposentadoria de Ministros do Supremo Tribunal Federal e possibilitou a exoneração de servidores públicos de diversos setores da Administração, incluindo a destituição sumária de professores de suas funções nas universidades públicas.
Sustentar, em pleno regime democrático-constitucional, eventual repaginação do AI-5 equivale a uma afronta injustificável, capaz, portanto, de levar à cassação do mandato e eventual responsabilização criminal e civil do referido mandatário.
A Constituição de 1988, em diversas passagens, recorre à normatividade tanto do Estado Democrático de Direito (art. 1º, caput, inc. V e Parágrafo único; art. 5º, inc. XLIV; art. 17; art. 34, inc. VII, alínea “a”; art. 91; art. 127; art. 134) quanto dos direitos humanos (art. 4º, inc. II; art. 5º, § 3º; art. 109, § 5º; art. 134; art. 7º do ADCT) para pautar o projeto constitucional que estabelece. Isto ocorre por meio da proteção de direitos e da estruturação de instituições. Decorre daí que a imunidade parlamentar assegurada no art. 53 não pode ser utilizada para depor o próprio sistema constitucional. Constitui abuso de direito ou prerrogativa não autorizado. No caso específico, é o bastante para configurar manifesta hipótese de quebra de decoro parlamentar, prevista no art. 55, inc. II, da Constituição, levando-se à cassação do mandato.
Desse modo, é imperioso que as instituições brasileiras reajam à altura contra essa agressão clara à ordem jurídico-constitucional.
Note-se, inclusive, que a conduta do Deputado Federal Eduardo Bolsonaro não fugiria do que foi estabelecido pela Lei de Segurança Nacional, Lei 7.170/1983. Não obstante erigida durante o regime ditatorial, é possível interpretá-la, nos termos da Constituição de 1988, para dar proteção ao regime constitucional estabelecido. Seu art. 22, inc. I, tipifica a conduta de propagandear, em público, processos violentos ou ilegais para alteração da ordem política ou social. Já seu art. 23, incs. I, II e III, também proíbe a incitação à subversão da ordem política ou social e à animosidade entre as Forças Armadas ou entre estas e as classes sociais ou as instituições civis. Vários foram os atos do governo atual que poderiam ser enquadrados em tais normas. Mas nenhum deles, destaque-se, foi tão longe quanto o pleito pelo retorno do AI-5 defendido pelo Deputado Eduardo Bolsonaro.
O louvor à ditadura é crime, de acordo com a 2ª Câmara Criminal de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal. O órgão do MPF sustenta que “a apologia à ditadura militar já é crime no Brasil, previsto na Lei de Segurança Nacional (Lei 7.170/83), na Lei dos Crimes de Responsabilidade (Lei 1.079/50) e no próprio Código Penal (artigo 287).” E tanto é assim que parlamentares da oposição já protocolizaram notícia-crime perante o Supremo Tribunal Federal.
Pedidos de desculpas ou furtivas desautorizações não são suficientes para elidir a responsabilidade pelas declarações feitas. Não estão, muito menos, cobertas pelas imunidades parlamentares estabelecidas pela Constituição.
Aliás, o que se nota do atual governo brasileiro é, em larga medida, a chancela reiterada do apelo ao golpe de Estado, como se pode observar nas declarações do General Augusto Heleno ou do General Villas-Bôas em relação, inclusive, a casos em pauta de julgamento no Supremo Tribunal Federal.
Nesse mesmo dia da entrevista dada pelo filho, o Presidente da República, em verdadeiro ato de censura, cancelou a assinatura do jornal Folha de S. Paulo na órbita federal, atentando contra a impessoalidade que deve imperar na Administração Pública. Ele ainda ameaçou anunciantes do jornal.
As críticas à entrevista vieram de diversos matizes políticos, do Ministro do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio e de órgãos da sociedade civil. O Presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, defendeu punição para a manifestação. O Presidente do Senado, Davi Alcolumbre, repudiou a declaração. Mas isso não é suficiente. Até o momento de fechamento deste texto, a Presidência do Supremo Tribunal Federal permaneceu silente. De órgãos como a Procuradoria-Geral de República e o Ministério da Justiça, acredita-se, nada virá.
No momento em que as instituições se calam, a tentativa de normalização do discurso de exceção justamente pavimenta o caminho para a autocracia. É o que temos visto e estudado na Polônia, na Hungria, nos Estados Unidos, nas Filipinas e em inúmeros outros países. Não podemos ser e silentes e lenientes neste momento.
O autoritarismo que já atingiu universidades, conselhos de políticas públicas, narrativas do passado e políticas de Estado, veículos de mídia e mesmo partidos políticos outrora apoiadores do governo, está ganhando corpo rapidamente. Cabe, assim, às instituições democráticas a obrigação de responder, pronta e eficazmente, com a cassação do Deputado Eduardo Bolsonaro.
Centro de Estudos sobre Justiça de Transição da UFMG
Coordenação do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da UFMG