setembro 23, 2020
A Presidência da República apresentou ao Congresso Nacional, em 3 de setembro de 2020, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) n. 32/2020, que objetiva alterar as regras para os futuros servidores estatais dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário da União, estados e municípios.
A PEC é a primeira de três etapas da reforma administrativa que atende à promessa de campanha do atual Presidente, eleito a partir de uma agenda reformista neoliberal. Para que essa etapa inicial entre em vigor, a proposta deverá ser analisada pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal e aprovada por três quintos dos membros de cada casa legislativa.
Apesar de apresentada como uma medida técnica e imprescindível para o controle das contas públicas no país, a reforma administrativa é calcada em uma lógica privatizadora e por isso merece alguns questionamentos: qual o objetivo do Governo com a reforma administrativa? Para atingi-lo, quais são as principais mudanças pretendidas pela PEC? E por que essas alterações, de cunho neoliberal, podem apresentar um risco à democracia?
Com a reforma administrativa, o Governo Federal pretende aperfeiçoar o funcionamento da máquina pública, com mecanismos de gestão “mais modernos e flexíveis”, especialmente por meio da contenção de gastos públicos e do aumento da eficiência administrativa.
Para tanto, a PEC propõe medidas como vedação de férias por tempo superior a 30 dias por ano, proibição de progressão de carreira ou pagamento de adicionais aos servidores exclusivamente por tempo de serviço e vedação de redução de jornada sem correspondente redução da remuneração.
Além disso, o texto apresentado ao Congresso Nacional confere maior autonomia ao Presidente da República – e, por simetria, aos Chefes do Poder Executivo nos estados e municípios – para determinar a organização da Administração Pública, o que inclui a possibilidade de criação, modificação e extinção de cargos e órgãos públicos por meio de decreto, sem necessidade de aprovação do Congresso.
Há, ainda, previsão quanto ao fim da estabilidade dos servidores estatais.
Pelo texto constitucional vigente desde 1988, a regra é que todo servidor público titular de cargo de provimento efetivo nomeado por meio de concurso público é estável após três anos de efetivo exercício. Isso não impossibilita a demissão de servidores que não cumpram seus deveres, pois há a possibilidade de perda do cargo em virtude de sentença judicial transitada em julgado ou de decisão em processo administrativo, assegurada a ampla defesa. A previsão constitucional de demissão mediante procedimento de avaliação periódica de desempenho ainda não foi regulamentada pelo Legislativo.
A garantia de estabilidade não é um privilégio atribuído aos servidores, mas um instituto pensado para impedir que eventuais influências político-partidárias comprometam o desempenho das atividades administrativas. Em outras palavras, a estabilidade serve de instrumento garantidor do desempenho impessoal dos servidores estatais, que devem atuar de acordo com o interesses públicos, sem receio de demissões injustas.
Se a PEC for aprovada tal como proposta, distinguirá os futuros servidores em cinco diferentes categorias conforme as modalidades de contratação: os cargos típicos de Estado, os contratados por tempo indeterminado, os contratados por prazo determinado, os cargos de liderança e assessoramento e os vínculos de experiência (uma das etapa das dos concursos públicos).
A estabilidade, entretanto, só será garantida às carreiras típicas de Estado, a serem especificadas em lei posterior, mas que devem contemplar aquelas tarefas existentes no funcionalismo público que não encontram paralelo na iniciativa privada, como é o exemplo dos cargos ocupados por auditores da Receita e diplomatas. Essas carreiras típicas de Estado também ficam blindadas de eventuais cortes de jornadas e salários.
Vale ressaltar que a proposta do governo também facilita a demissão dos futuros servidores, já que possibilita a perda do cargo nos casos em que ainda há discussão pendente no Judiciário, sem que seja necessário aguardar a decisão final no processo.
O termo “neoliberalismo” não é de simples conceituação. Apesar disso, ele é comumente associado a um conjunto de políticas privatizadoras e desregulamentadoras, de redução radical do Estado Social.
Isso não significa, contudo, que o neoliberalismo esteja vinculado ao libertarianismo político ou a redução das intervenções estatais no âmbito privado. Em realidade, busca-se a reformulação do papel do Estado em prol do mercado, que passa a assumir funções tradicionalmente atribuídas ao Estado Social, inclusive no âmbito da administração pública.
A privatização é uma destas medidas de reformulação do papel do Estado e engloba tanto a atribuição de responsabilidades do Estado à atores privados, quanto a “mercantilização” da burocracia, com a reformulação dos direitos e deveres dos servidores de acordo com as normas que pautam a iniciativa privada.
Apesar de apresentada como uma solução técnica e politicamente neutra, supostamente imprescindível para enfrentar os problemas de um Estado assoberbado, a privatização faz parte de uma agenda política clara e produz grandes consequências no âmbito normativo.
Como sintetiza Jon D. Michaels, medidas como a flexibilização de direitos dos servidores públicos, a mercantilização e a terceirização de serviços públicos acabam por engrandecer o poder estatal, ao invés de controlá-lo.
Isso porque a precarização destes direitos, instituídos como uma forma de pesos e contrapesos internos à administração pública, bem como a contratação direta de agentes privados têm como consequência a redução da independência do funcionalismo público, pela busca por alianças de conveniência mútua entre servidores/comissionados/terceirizados e os agentes políticos.
Estimula-se, assim, uma relação de lealdade entre os agentes públicos e os líderes no poder, tendo em vista a possibilidade de demissão e substituição destes funcionários.
Presidente Jair Bolsonaro e Ministro da Economia Paulo Guedes em solenidade no Palácio do Planalto, em 20/02/2020. Foto: Marcos Corrêa.
Além disso, os servidores são vinculados a rigorosa regulamentação e possuem diversos deveres e proibições, aos quais os terceirizados não estão vinculados, o que torna mais difícil a monitoração e contestação de sua atividade. Como resultado, há uma menor regulamentação e transparência na atividade por eles prestada, dificultando a fiscalização e a própria participação dos cidadãos na atuação administrativa.
Por todos estes motivos, reformas administrativas pautadas em pressupostos privatizadores parecem ir de encontro ao que pretendem solucionar. No lugar de uma redução do Estado e de um serviço mais técnico, possibilita-se uma atuação mais arbitrária e vinculada a interesses políticos, em razão da relação de lealdade necessária à manutenção do cargo público.
Igualmente, enfraquece-se as amarras normativas na prestação do serviço público, tendo em vista a menor transparência das atividades realizadas por particulares.
Há, portanto, um fortalecimento do poder estatal, além de uma maior politização do serviço público e deterioração de mecanismos de pesos e contrapesos tradicionalmente desempenhados por servidores públicos e pela participação da população no âmbito da administração pública.
Assim, não causa estranheza que líderes autoritários se apropriem da agenda neoliberal para buscar consolidação de seu poder, como no caso da ditadura de Pinochet, no Chile, e, recentemente, nos casos da Polônia e Hungria, países há algum tempo apontados como exemplos de deterioração da democracia.
No Brasil, na década de 1990, foi realizado um grande movimento de privatização, de acordo com as medidas indicadas pelo Consenso de Washington. Atualmente, essa agenda política parece ter se renovado, com a reforma trabalhista, a reforma da previdência e, mais recentemente, a proposta de reforma da administração pública, pautada na ampliação da prerrogativa de auto-organização do Poder Executivo.
Esta não é a primeira iniciativa do governo de Jair Bolsonaro que, alegando a necessidade de desburocratização do Estado, atenta contra instituições e garantias asseguradas pela Constituição de 1988. O Decreto n. 9.759/2019, que extinguiu e limitou os colegiados no âmbito da administração pública federal, centralizou os processos de tomada de decisão, em detrimento da participação dos cidadãos, abrindo espaço para o aparelhamento da máquina pública.
Assim, para além de se pensar a constitucionalidade das medidas estipuladas na PEC n. 32/2020, a discussão sobre o projeto de emenda constitucional deve considerar os efeitos normativos e institucionais de uma reforma de cunho neoliberal, especialmente diante do risco de que ela contribua para a deterioração da democracia no país – que já vivencia um substancioso declínio democrático.
Por Ana Luiza Pinto Coelho Marques [1] e Bianca Rocha Barbosa [2].
Mais em:
[1] Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFMG. Pesquisadora do Centro de Estudos sobre Justiça de Transição (CJT/UFMG).
[2] Especializanda em Direito Administrativo pela UFMG. Pós-graduada em Direito da Mineração pelo Centro de Estudos em Direito e Negócios (CEDIN).