outubro 8, 2020
No dia 23 de setembro de 2020, foi divulgada a celebração de um acordo histórico envolvendo a Volkswagen do Brasil e os Ministérios Públicos Federal, Estadual de São Paulo e do Trabalho. A empresa se comprometeu a pagar cerca de 36 milhões de reais para a associação de ex-trabalhadores perseguidos e torturados pelo regime militar com o envolvimento da montadora, bem como destinar parte desse valor para instituições de promoção da memória relativa ao período.
Trata-se de um acordo inédito no contexto da justiça de transição no Brasil e um avanço importante no reconhecimento de responsabilidades de empresas face a violações de direitos humanos. Apesar do ineditismo do acordo, pergunta-se: essa seria uma medida satisfatória nos termos de uma justiça de transição? Quais seriam seus desdobramentos e implicações, decorrido tanto tempo desde os fatos tratados?
O acordo em questão surge na esteira dos movimentos por responsabilização e memória relativos ao período da ditadura civil-militar (1964-1985), que tiveram como uma de suas conquistas mais importantes a criação das Comissões da Verdade no Brasil. Nesse sentido, em meio às audiências da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo, conhecida como comissão “Rubens Paiva”, e o GT 13 – Ditadura e repressão aos trabalhadores e ao movimento sindical, da Comissão Nacional da Verdade (CNV), documentos e testemunhos apontaram a colaboração da Volkswagen com o regime militar.
Dentre as violações praticadas pela empresa e que constam no Relatório Final da CNV estão: a cooperação com o Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), informando o nome de trabalhadores considerados “subversivos”; a prisão de metalúrgicos sem mandado dentro de suas instalações; e a tortura de funcionários no interior da fábrica, tal como a sofrida pelo operário Lúcio Bellentani, cuja história ficou registrada no documentário “Cúmplices? – A Volkswagen e a Ditadura Militar no Brasil”.
A divulgação do Relatório em 2014 foi uma importante conquista para os trabalhadores e serviu de embasamento para a busca por reparações coletivas. A mobilização social ensejou uma representação ao Ministério Público Federal assinada pelo Fórum de Trabalhadores por Verdade, Justiça e Reparação, de modo que, no ano de 2015, o MPF iniciou três inquéritos civis para a investigação da colaboração da empresa alemã com prisões ilegais, torturas e outros tipos de violações durante a ditadura brasileira. Ocorre que, depois de muitas negociações e investigações, decidiu-se assinar um acordo que ainda deixa a desejar na reparação reivindicada pelos trabalhadores.
O acordo firmado ou TAC (Termo de Ajustamento de Condutas) é um mecanismo legal de caráter extrajudicial no qual as partes se comprometem a cumprir determinadas medidas para evitar que uma ação judicial seja movida diante da constatação de irregularidades. No caso em questão, o acordo foi firmado pelos representantes dos Ministérios Públicos Federal, Estadual de São Paulo e do Trabalho que se comprometeram a arquivar os inquéritos caso a Volkswagen cumpra as seguintes medidas:
Os autores da representação manifestaram seu descontentamento com certas cláusulas do acordo por meio de nota circulada na mídia, indicando, entre outros, a falta de participação no processo e a ausência de reparação integral, com a exclusão de pautas reivindicadas nesses cinco anos. Ademais, eles indicaram que ficaram sabendo da assinatura do TAC pela imprensa alemã – cuja tramitação estava sob sigilo no Brasil – mesmo com a articulação para o desenvolvimento da pauta.
Em todo caso, o principal ponto de desacordo se refere à desconsideração da construção de um Lugar de Memória das Lutas dos Trabalhadores, cuja localização já estava em negociação avançada com a Prefeitura de São Paulo. Tal medida, de caráter coletivo e difuso, promoveria o direito à memória e à verdade dos trabalhadores e movimento sindical, visibilizando a luta por justiça, que permanece até hoje.
Nesse sentido, o repasse de R$ 6 milhões para o Memorial da Luta pela Justiça, iniciativa da Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo que diz respeito à atuação dos advogados de presos e perseguidos políticos na Justiça Militar, não contempla a pauta do mundo do trabalho e das respectivas violações sofridas durante a ditadura. O acordo parece, então, perder de vista a inédita possibilidade de amplificar a esquecida e negligenciada responsabilização de empresas por violações de direitos humanos na ditadura.
Evento de divulgação dos termos do acordo de reparação de trabalhadores perseguidos na ditadura civil-militar assinado pela Volkswagen, no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC. Fotos: Adonis Guerra/SMABC
Ademais, os autores são contrários ao repasse de R$ 9 milhões aos Fundos de Defesa de Direitos Difusos do Estado de São Paulo e Federal, este inserido no Ministério da Justiça. Em sua visão, a somatória das verbas (R$ 15 milhões) deveria ser totalmente empregada na construção do Lugar de Memória das Lutas dos Trabalhadores.
Por fim, quanto ao repasse de R$ 16,5 milhões para a Associação de Vitimados pela Volkswagen – Heinrich Plagge, trata-se de demanda aceita como uma das cláusulas de negociação em março de 2018, o que os autores consideram justo. Contudo, a transferência em caráter de “doação” pela empresa ressoa como mera liberalidade da Volkswagen, e não como medida de reparação.
Apesar das controvérsias em torno de sua assinatura, o TAC em questão pode ser entendido como uma das várias medidas possíveis de reparação no contexto da justiça de transição.
Em sua concepção predominante, a justiça de transição é composta por quatro pilares:
Por muito tempo, as medidas de justiça de transição estiveram focadas em atores públicos – – governos e governantes, polícias, forças armadas e forças de segurança em geral – – devido à sua centralidade na promoção e cometimento das violações denunciadas. Entretanto, a cumplicidade e a atuação de atores privados como civis e empresas, tanto na instalação de governos autoritários quanto no cometimento das violações citadas, são notórias.
Veja-se o caso do Tribunal Russell II, que, entre 1974 e 1976, realizou três sessões para tratar das violações de direitos humanos cometidas durante as ditaduras latinoamericanas. Reconhecendo o interesse econômico específico de empresas multinacionais na instalação de um regime político que atendesse a seus propósitos econômicos, decidiu-se que a segunda sessão do tribunal, em 1975, seria dedicada a estudar eventuais responsabilidades de empresas multinacionais na instauração de ditaduras na América Latina. Os achados derivados desse esforço estão em um volume dedicado à escancarar a cumplicidade de empresas multinacionais na difusão de regimes militares na América Latina.
Ressalta-se, em tempo, que a responsabilização de agentes privados por violações de direitos humanos não se limita à pessoas jurídicas ou a grandes organizações. No caso das violações cometidas contra trabalhadores rurais, em Minas Gerais, durante a ditadura militar, por exemplo, o relatório final da Comissão da Verdade em Minas Gerais (Covemg) demonstrou que os autores ou mandantes de violações em conflitos agrários eram, em muitos casos, grandes proprietários rurais e agentes de segurança privada.
Tanto no caso dos conflitos rurais, quanto no caso da colaboração da Volkswagen com o regime militar, o caráter privado desses entes não os livra de ter que responder, na medida de suas contribuições, pelas violações cometidas. É nesse sentido que o TAC deve ser visto, não como uma liberalidade da empresa, mas como o cumprimento tardio da obrigação de reparar – simbólica e financeiramente – os afetados e as afetadas pela política de repressão durante da ditadura militar brasileira.
Por Júlia Guimarães [1], Mariana Rezende Oliveira [2], Sophia Pires Bastos [3] .
Mais em:
[1] Mestranda em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Pesquisadora bolsista (CAPES) e associada ao Centro de Estudos sobre Justiça de Transição (CJT/UFMG).
[2] Mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Pesquisadora associada ao CJT/UFMG.
[3] Mestranda em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Pesquisadora do CJT/UFMG.